Tim Burton perdido no labirinto da sua própria carreira? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 Setembro), com o título 'Esquizofrenia artística'.
Por vezes, a dimensão fantástica, ou fantasista, da obra de Tim Burton faz-nos esquecer que ele é também um metódico e contundente observador das tensões sociais e históricas. Até porque, convém não esquecer, a emergência de qualquer “coisa” que perturba a normalidade pressupõe, justamente, um sistema comunitário de leis apostado em definir e fazer funcionar essa normalidade. O exemplo extremo de A Noiva Cadáver (2005) poderá servir de sintoma eloquente: aí, através de um inusitado voto conjugal, o protagonista descobre-se mesmo envolvido com o mundo dos mortos.
Tim Burton |
Até certo ponto, A Casa da Senhora Peregrine para Crianças Peculiares é o seu filme mais próximo dessa duplicidade (festiva e fúnebre), encenando um universo em que a morte se encontra, por assim dizer, suspensa através da manipulação do tempo. Os resultados possuem qualquer coisa de bizarra esquizofrenia, como se a arte singular de Burton estivesse cada vez mais obrigada a satisfazer as regras de “acção” e “espectáculo” que, para o melhor e para o pior, têm marcado muitos filmes mais ou menos ligados aos impérios da Marvel e da DC Comics.
Deparamos, assim, com um brilhante tempo de exposição do drama a que o pano de fundo, discreto mas essencial, da Segunda Guerra Mundial confere uma perturbação muito especial — as “crianças peculiares” são, obviamente, um eco simbólico das mais indefesas vítimas do conflito. A certa altura, o filme parece obrigado a cumprir os cânones mais ou menos ruidosos de super-heróis e afins, como se Tim Burton se tivesse ausentado da sua direcção. Claro que poderá ser ele próprio a querer experimentar outros caminhos. É legítimo que o faça, mas ficamos com saudades da poesia trágica de Eduardo Mãos de Tesoura ou do humor de Marte Ataca!.