Com Águas Perigosas encontramos o que tem faltado à temporada de Verão: um espectáculo que conhece as leis narrativas do modelo de thriller que aplica — este texto faz parte de um dossier do Diário de Notícias (10 Agosto) e foi publicado com o título 'Quando Jaws inventou o conceito de blockbuster'.
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Ao vermos Águas Perigosas, as memórias de Tubarão (1975), de Steven Spielberg, são incontornáveis. Há uma jovem incauta atacada por uma tubarão e não falta sequer a bóia/farol a pontuar o horizonte... Mas há também óbvias diferenças: Tubarão desenvolvia-se como um conto filosófico sobre a comunidade face à violência de uma natureza pouco maternal (desse modo reescrevendo as regras clássicas das sagas utópicas de Hollywood); por sua vez, Águas Perigosas define-se como uma variação sobre um modelo de thriller em que a solidão da personagem central constitui um decisivo elemento dramático.
Em qualquer caso, Tubarão ocupa um lugar na história do moderno cinema americano que, como é fácil compreender, Águas Perigosas não poderá ambicionar. De facto, o filme de Spielberg “inventou” o conceito de blockbuster. Não por causa do custo da sua produção, entenda-se: Tubarão teve um orçamento de 9 milhões de dólares, o que, mesmo considerando a necessária actualização para valores actuais, o definia como uma produção “normal” — Barry Lyndon, por exemplo, lançado no mesmo ano (actualmente em reposição no mercado português), custou 11 milhões. O que, a partir daí, passou a definir um blockbuster foi a estratégia do seu lançamento: uma ocupação gigantesca de salas (ou de ecrãs, como se diz na linguagem do marketing cinematográfico) e a “obrigação” de conseguir um rendimento altíssimo na primeira semana de exibição (em boa verdade, logo no fim de semana de estreia).
Encurtando uma longa história, importa dizer que o conceito de blockbuster, inflacionando os custos de produção e impondo uma agressiva ocupação dos mercados, se tornou um dos problemas fulcrais da indústria americana. Steven Soderbergh já o disse publicamente: é possível interessar um grande estúdio num projecto orçado em 100 milhões, mas ao propor um filme de apenas 10 milhões, já sabe que será olhado como um perigoso suspeito...
Neste contexto, Spielberg é um caso admirável de sobrevivência. Não porque a sua história se tenha distanciado do universo dos blockbusters. Bem pelo contrário: de Os Salteadores da Arca Perdida (1981) a As Aventuras de Tintin – O Segredo do Licorne (2011), tem assinado algumas das mais ambiciosas produções de Hollywood (e o relativo falhanço comercial do segundo título referido não altera a questão). Acontece que, de A Lista de Schindler (1993) a Lincoln (2012), Spielberg nunca renegou a sua fundamental vocação de contador de histórias. Mesmo quando Lincoln foi considerado um projecto pouco estimulante e correu o risco de ser “reduzido” a uma mini-série televisiva...