quinta-feira, agosto 11, 2016

Tubarões & etc. (1/4)

Com Águas Perigosas encontramos o que tem faltado à temporada de Verão: um espectáculo que conhece as leis narrativas do modelo de thriller que aplica — este texto faz parte de um dossier do Diário de Notícias (10 Agosto) e foi publicado com o título 'O paraíso natural invadido por um tubarão do cinema'.

Noutros tempos de vidas menos aceleradas, porventura mais ingénuas, uma boa receita para o chamado “filme de Verão” podia envolver três ingredientes mágicos: uma praia paradisíaca, algumas jovens em biquini e as canções de Elvis Presley... Assim mesmo. Reveja-se a aventura que ele protagonizou em 1967, à procura de um tesouro no fundo do mar; tinha um título original suavemente moralista sobre o valor efémero da riqueza, Easy Come, Easy Go, mas o tradutor português achou por bem esclarecer todas as dúvidas e chamou-lhe Piratas em Biquini.
Os tempos mudaram — a prova está no emocionante Águas Perigosas. Porque a crise impõe as mais perversas formas de austeridade, temos “apenas” uma jovem em biquini, Nancy, aliás apostada em cumprir uma tarefa, não banalmente materialista, mas de redenção afectiva: vai fazer surf na mesma praia (paradisíaca, podem crer) em que a mãe soube que ela ia nascer — tudo se passa num recanto esquecido do México, mas como o cinema é uma arte de muitos enganos partilhados, o filme foi rodado na Austrália. No problem. Quem assume, então, o papel de Elvis? Digamos que cantar Love Me Tender não será a sua especialidade: não se pode pedir tanto a um solitário tubarão — quando olha para cima, o seu comovido fascínio pelas pernas de Nancy é puramente degustativo, sem metáfora.
Numa temporada marcada pelo esvaziamento dramático dos filmes de super-heróis, executados por equipas de “efeitos especiais” sem qualquer gosto pelo cinema, sabe bem encontrar um filme como Águas Perigosas. Há nele um velho gosto de “série B”, capaz de transformar uma improbabilidade à beira do inverosímil num vibrante exercício narrativo (lembramo-nos dos filmes produzidos por Roger Corman que, ao longo da década de 60, confiou em alguns jovens desconhecidos como Francis Ford Coppola ou Martin Scorsese).
A bizarria da situação está, de algum mundo, reconhecida no título original, The Shallows (à letra: baixios, águas pouco profundas). Um tubarão num contexto daqueles é, antes de qualquer explicação mais ou menos ecológica, uma eficaz ideia de argumento. Que é como quem diz: a velha lição de Steven Spielberg, em Tubarão (1975), continua válida. E tanto mais quanto o filme recusa a facilidade da aceleração postiça de muitos produtos contemporâneos que confundem a “velocidade” da montagem com a criação de emoção.
Sobretudo na primeira parte de exposição das linhas de força do drama, Águas Perigosas apresenta-se como um filme inteligentemente contemplativo em que a tensão nasce da metódica observação do espaço, quer dizer, da estranheza das suas imagens e também da envolvência dos seus sons. Vogamos, afinal, sobre (e sob) as ondas da mais primitiva e inquietante parábola: a Mãe natureza pode ter tanto de acolhedor como de devorador — o factor humano é o milagre que sobrevive no interior dessa contradição.
Produzido pela Columbia, uma “major” de Hollywood, e dirigido pelo espanhol Jaume Collet-Serra (que se tornou conhecido em 2005 com o filme de terror A Casa de Cera), Águas Perigosas ilustra um curioso movimento de recuo estratégico de alguns grandes estúdios. Compreendendo que as grandes máquinas promocionais serão sempre a excepção, não a regra, trata-se de (re)valorizar as potencialidades — criativas e comerciais — dos objectos de pequeno orçamento (o seu custo de 17 milhões de dólares é quase anedótico num contexto em que as sagas de super-heróis tendem a ultrapassar os 200 milhões).
Ironicamente, ou talvez não, este poderá ser também o filme capaz de permitir a Blake Lively superar o seu estatuto de “quase-estrela” no actual panorama de Hollywood (poderemos reencontrá-la no magnífico Café Society, de Woody Allen, com estreia agendada para 20 de Outubro). É mesmo a segunda vez em que ela arrisca “transportar” a energia dramática de todo um filme, depois de A Idade de Adaline (2015), de Lee Toland Krieger, um melodrama de componentes fantásticas que talvez merecesse mais do que a indiferença quase geral com que foi recebido.
Blake Lively começou por se distinguir no interior de alguns elencos de invulgar consistência global, em filmes como As Vidas Privadas de Pippa Lee (2009), de Rebecca Miller, A Cidade (2010), de Ben Affleck, e Selvagens (2012), de Oliver Stone. Pelo meio, surgiu num medíocre filme de super-heróis, Green Lantern (2011), contracenando com Ryan Reynolds, com quem se casou um ano mais tarde. Agora, em confronto com um tubarão pouco dado a nuances dramáticas, demonstra uma sofisticada capacidade de sustentar uma personagem sem hipóteses de diálogo seja com quem for, a não ser uma simpática gaivota ferida que nos recorda como a natureza pode oscilar entre uma violência radical e a mais básica vulnerabilidade. Faltou uma canção de Elvis na banda sonora, mas não se pode ter tudo.