quarta-feira, agosto 03, 2016

Ser ou não ser — por Don DeLillo

Tudo começa com a visita do narrador, Jeffrey, ao seu pai, Ross Lockhart, bilionário que desenvolveu uma instituição dedicada ao acompanhamento dos que vão morrer — Artis, a mulher de Ross (separado da mãe de Jeffrey), está à beira de sucumbir a uma doença irreversível; através de um complexo sistema de criogenia, desenvolvido na instituição, ele quer preservar o corpo de Artis para, mais tarde, a fazer reviver...
A breve sinopse do novo romance de Don DeLillo, Zero K, pode evocar alguns modelos de ficção científica, mais ou menos contaminados por efeitos típicos do policial. Em boa verdade, o livro não encaixa em nenhum desses modelos. Não porque DeLillo rejeite a sua herança, antes porque, como sempre, aquilo que o mobiliza é essa coexistência perversa entre as palavras e as coisas, num movimento em que nomear o real é tanto uma forma de o domar, como de sentir que algo da sua pulsação nos escapa — afinal de contas, ele é autor de um romance que se chama The Names (1982).
Escreve, a certa altura, Jeffrey: "Tinha a sensação de estar fora de mim próprio, consciente do que estava a dizer, mas não tanto a dizê-lo, mais simplesmente a ouvi-lo." Zero K é uma viagem prodigiosa através dessa clivagem que faz de uma personagem humana um espelho e um espectro, numa vertigem mais ou menos controlada (se é que se trata de algo controlável) em que cada um se pode perder, não apesar da proximidade do outro, mas através dela.
Em resumo, um fascinante evento literário, avesso à velocidade contemporânea, observando como somos (ou não somos) através da singularidade humana da linguagem — Jeffrey de novo: "Algumas palavras pareciam estar localizadas no ar, à minha frente, ao alcance da mão."

>>> Don DeLillo nas páginas do New York Times.