segunda-feira, agosto 01, 2016
Quem disse que Bowie não era clássico ?
(crónica de uma noite de Proms)
A ideia de viver uma relação aberta e inclusiva da música clássica com outros espaços (e públicos) é há muito uma das características mais vincadas dos Proms, verdadeira instituição do calendário britânico de concertos que, sob organização da BBC, todos os anos esgota sucessivas noites no Royal Albert Hall (e alarga a plateia a muitos mais espectadores através das transmissões via rádio, ocasionalmente TV).
O programa é geralmente de primeira água, chamando grandes orquestras, grandes maestros, grandes solistas e cantores e abrindo o naipe de compositores a várias épocas e estilos. Apesar do centro de gravidade assente sobre séculos e séculos de criação “clássica”, a pop costuma visitar os Proms, nem que numa noite no programa de cada ano. Em 2014, os Pet Shop Boys estrearam ali um musical seu dedicado à figura de Alan Turing. E este ano, na noite da passada sexta-feita, a música de David Bowie tomou conta daquela sala, num tributo orquestral que chamou compositores a assinar novos arranjos para algumas das suas mais clássicas canções, chamando depois a palco alguns cantores para as protagonizar.
Dizer que foi magnífico é apenas parte dos ecos que a noite deixou registado junto de quem a acompanhou. Porque ali nasceu um daqueles raros momentos de palco que pedem que a posteridade os possa recordar. E foi para isso que se criou o disco ao vivo, certo? Este é, contudo, um pensamento ainda no plano do wishful thinking já que não tem havido edições em disco de muitas das criações apresentadas nos Proms. O musical dos Pet Shop Boys, por exemplo, ainda não viu a luz do dia depois daquela noite... Poderá esta homenagem a David Bowie ter futuro diferente? Talvez. Para já, mesmo assim, e como é norma nos Proms, o concerto pode ser escutado na íntegra no site da BBC.
Podem ouvir aqui.
E aqui ver alguns momentos em vídeo:
“Ashes to Ashes”, com Paul Buchanan
“Station to Station”, com Neil Hannon e Amanda Palmer
“Heroes”, com Anna Calvi e Amanda Palmer
A ideia base para o concerto emergiu de um EP orquestral que Amanda Palmer (dos Dresden Dolls) e Jherek Bishoff apresentaram pouco depois da morte de Bowie, reinventando algumas das suas canções tendo por base arranjos para orquestra. Tendo a orquestra do coletivo Stargaze como força instrumental e o maestro Andre de Ridder ao leme das operações, o programa desafiou uma série de compositores – como Anna Meredith, David Lang, Michel van der Aa, Greg Saunier (dos Deerhof) ou, naturalmente, Jherek Bishoff – a reinventar os arranjos das canções. E, depois, num desfile em palco, sucederam-se as presenças de Neil Hannon, Amanda Palmer, Connor O’Brien, Marc Almond, Anna Calvi, Paul Buchanan, Elf Kid e Laura Mvula, todos eles de “escola” pop/rock e periferias, o contraste sendo estabelecido com o desafio lançado ao contratenor Philippe Jaroussky, que transportou uma espantosa reinvenção (por David Lang) de Always Crashing in The Same Car para uma dimensão de cruzamento de tempos e formas que representa a essência dos jogos de diálogo que passaram por esta noite.
Os gostos e vivências de cada um definiram naturalmente os momentos altos junto de cada espectador. Fizeram as minhas medidas as versões arrebatadoras de Ashes to Ashes com Paul Buchanan, de Station to Station com Neil Hannon e Amanda Palmer ou de Lady Grining Soul por Anna Calvi e Jherek Bishoff, além do trio centrado no álbum deste ano (já lá vamos...). As abordagens instrumentais a Warszawa (que abriu o programa) ou Let’s Dance (que surge depois de uma leitura de Fame por Laura Mvula) alargaram as visões para lá da dimensão vocal que comandou o alinhamento.
A inesperada presença no alinhamento de This Is Not America (que resultou de uma colaboração de Bowie com Pat Metheney em meados dos anos 80), com Neil Hannon a partilhar o microfone com o rapper Elf Kid foi uma das surpresas menos esperadas. Este foi o único episódio menos convincente da visão proposta (faltou ali a dimensão jazzística, talvez...). Heroes, com Anna Calvi, é um clássico à espera de gravação em disco...
Mais adiante ninguém ficou certamente indiferente ao trio de canções convocadas entre as que fazem o alinhamento do álbum Blackstar (já deste ano), que garantiram ao concerto o sentido de atualidade (e não um de simples nostalgia) que uma noite como esta exigia. Girl Loves Me com Laura Mvula, I Can’t Give Anything Away com Paul Buchann e Blackstar com uma “chuva de estrelas” com Amanda Palmer, Anna Calvi e Jherek Birshoff, fizeram deste segmento um dos momentos mais emotivos da homenagem. O campeonato das emoções teve contudo de dividir créditos com as duas presenças de Marc Almond sobre arranjos de Anna Meredith, em Life on Mars? e Starman. Foi ele quem ali chamou a palco a memória do papel influente e transformador que Bowie teve sobre si e tantos outros que, ao longo dos anos, nele encontraram referencia e fonte de inspiração. A noite, afinal, mostrou como são muitos ainda os destinos possíveis para a música de Bowie e das memórias que deixou entre nós.