domingo, agosto 21, 2016

Jacques Demy e a sua arqueologia

PEAU D'ÂNE (1970)
Catherine Deneuve
A história dos filmes vai acumulando uma memória de lugares que importa revisitar e estudar — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 Agosto), com o título 'O cinema também tem a sua arqueologia'.

Olivier Weller é um arqueólogo francês, especialista no período Neolítico. Integrando o Centro Nacional de Pesquisa Científica, tem estudado em particular a produção do sal há cerca de 6000 anos. O certo é que, nos últimos tempos, memórias pessoais e razões cinéfilas “desviaram-no” para um tempo bem mais próximo. 1970, para sermos exactos: com a sua equipa de investigadores, Weller tem estado a fazer um trabalho de campo sobre os cenários em torno do castelo de Neuville, a Oeste de Paris, na região das Yvelines (integrando Versalhes) — foi aí, precisamente no Verão de 1970, que Jacques Demy (1931-1990) rodou esse filme belíssimo que é A Princesa com Pele de Burro (Peau d’Âne), adaptando o conto clássico de Charles Perrault.
JACQUES DEMY
(1931-1990)
Depois de Os Chapéus de Chuva de Cherburgo (1964) e As Donzelas de Rochefort (1967), era a terceira vez que Catherine Deneuve integrava o mundo mágico de Demy. No mesmo ano em que surgiria noutro título emblemático — Belle de Jour, de Luis Buñuel —, Deneuve interpretava a princesa que, reagindo contra um casamento imposto (e incestuoso), é ajudada por uma fada (Delphine Seyrig) a disfarçar-se (com uma pele de burro) e a sobreviver na floresta... Demy celebrava um conceito de maravilhoso que, no cinema francês, o reafirmava como discípulo de Jean Cocteau (1889-1963). E vale a pena recordar que Demy convocava Jean Marais para interpretar o seu rei, ele que já tinha sido o príncipe assombrado, encenado por Cocteau em A Bela e o Monstro (1946).
Com a investigação a decorrer desde 2013, Weller tem deparado com um terreno recheado de sinais surpreendentes, incluindo restos de lixo que não foi recolhido — como lembra um técnico citado numa reportagem do jornal Liberátion (3 Agosto), na altura as equipas de rodagem ainda não tinham o espírito ecológico dos nossos dias. Há de tudo um pouco, desde os brilhantes de um vestido até às fundações da cabana da princesa, passando pelas marcas de uma barra metálica incrustada numa árvore para que o príncipe (Jacques Perrin) pudesse espiar a sua amada. Os resultados do trabalho serão depositados na Cinemateca Francesa, estando também na base de um documentário, dirigido por Pierre-Oscar Lévy e o próprio Welles, a ser lançado em 2017.
Este é, afinal, apenas um sintoma de um modo cada vez mais importante, e mais pertinente, de (re)fazer a história do cinema — por exemplo, Peter Brosnan terminou recentemente um filme sobre as zonas da Califórnia onde, em 1923, Cecil B. DeMille rodou a sua versão muda de Os Dez Mandamentos. Para além das curiosidades mais ou menos insólitas que cada investigação possa revelar, trata-se de reconhecer a existência de uma arqueologia cinematográfica, capaz de nos fazer perceber a complexidade criativa da relação de um filme com o terreno que “ocupa”. Em tempos de muitas ilusões digitais, é salutar regressarmos às matérias do real.

>>> Reportagem sobre a rodagem de Peau d'Âne [arquivo: INA].