A ascensão e queda do ciclista Lance Armstrong são revisitadas num notável filme de Stephen Frears — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 Julho), com o título 'Os sete pecados mortais de Lance Armstrong'.
A saga do ciclista americano Lance Armstrong envolve uma das mais dramáticas histórias modernas de ascensão e queda, glória e decadência. O cinema já a tinha contado no documentário A Mentira de Armstrong (2013), de Alex Gibney. Agora, podemos descobrir Vencer a Qualquer Preço, uma realização do inglês Stephen Frears, estreada há cerca de um ano no Festival de Toronto. O filme baseia-se no trabalho do jornalista irlandês David Walsh que, como repórter de The Sunday Times, investigou e denunciou as práticas de doping de Armstrong e da sua equipa (U.S. Postal Service Cycling Team).
A investigação de Walsh (interpretado no filme por Chris O’Dowd) acabou por dar origem ao livro Seven Deadly Sins: My Pursuit of Lance Armstrong, publicado em 2012. A ironia do título, referindo os “sete pecados mortais” de Armstrong é clara: foi também em 2012 que lhe foram retirados os seus sete triunfos no “Tour de France”, sendo, além disso, banido para a vida de qualquer actividade no mundo do ciclismo.
Escusado será dizer que Armstrong está longe de ser uma personagem simples de retratar. E se é verdade que a sua célebre admissão de culpa no programa de Oprah Winfrey (Janeiro 2013) condensa o essencial da sua imagem pública, não é menos verdade que o filme de Frears procura expor tudo aquilo que, mesmo num invulgar momento confessional como esse, não cabe na vertigem do mundo mediático.
Do ponto de vista desportivo, o esquema montado por Armstrong, com a cumplicidade do médico italiano Michele Ferrari (Guillaume Canet), decorria, afinal, de um contexto em que, como também se veio a provar, o uso de substâncias ilícitas era uma prática corrente da maioria dos ciclistas que participavam na prova máxima do ciclismo mundial. Escusado será dizer que nada disso esbate a impostura que Armstrong protagonizou, envolvendo um programa (é esse, aliás, o título original do filme: The Program) que incluía, entre outros aspectos, a manipulação de amostras sanguíneas e análises de urina. Em todo o caso, muito mais do que um mero relatório “factual”, Vencer a Qualquer Preço é um filme sobre a tensão cruel, potencialmente trágica, entre o delírio individual do sucesso e as expectativas de um contexto social e simbólico sempre apostado em endeusar novos heróis.
A personagem de Armstrong adquire uma dimensão ainda mais perturbante decorrente do facto de os seus momentos de apoteose no “Tour” terem sido precedidos de uma desesperada batalha contra o cancro —a experiência levou-o, aliás, à criação de uma fundação com o seu nome (hoje, Livestrong Foundation), vocacionada para o acompanhamento de pessoas afectadas por doenças cancerígenas. Há nele, afinal, a dimensão visceralmente trágica de um ser que testou os limites das proezas humanas a par da convivência com os sinais da morte.
Fiel à sensibilidade realista em que se formou, Frears faz um filme em que a acumulação da mais detalhada informação sobre a cadeia de acções que sustentava (e ocultava) o doping vai a par da construção de uma personagem que, de facto, à boa maneira das tragédias clássicas, é “maior que a vida”. Nesse processo, o trabalho do actor americano Ben Foster revela-se absolutamente essencial. Acima de tudo, ele consegue interpretar Armstrong como protagonista de uma aventura em que as fronteiras entre a regra e a excepção parecem diluir-se na fruição sem limites das vitórias. Num mundo ideal, Foster teria sido um sério candidato a uma nomeação para o Oscar de melhor actor... Mas, como Armstrong nos ensina, não há mundos ideais.