domingo, julho 24, 2016

Televisões em Nice — o vício da "análise"

Vendo as imagens televisivas de Nice, o mais importante parecia ser a "análise"... de coisa nenhuma — esta crónica de televisão foi publicada no Diário de Notícias (22 Julho), com o título 'As imagens de Nice'.

Na noite de 14 para 15 de Julho, tomei conhecimento do ataque terrorista em Nice através da televisão. Fixei-me na France 24 (na sua vertente em língua francesa), fazendo um “zapping” mais ou menos regular para a BBC e a CNN. Com o passar dos minutos e a evidência do horror, fui-me apercebendo da lógica de um padrão que, ao longo dos anos, foi sendo “formatado” por canais informativos como estes, exemplos óbvios e incontornáveis da “globalização” em que vivemos (ou dizemos viver).
Que padrão é esse? Pois bem, aquele que privilegia a “análise” para além dos factos — no limite mais bizarro, contra os próprios factos. Falo de quê? Da ânsia pueril de colocar em emissão, em estúdio ou por telefone, alguém que, em nome de uma qualquer “especialização” (política, policial, etc.), emitisse uma opinião tão acelerada quanto possível. Na prática, isto fez com que, logo perante alguns breves e angustiantes fragmentos de imagens de telemóveis, já surgissem pessoas a “comentar” este mundo e o outro.
Repare-se: não estou a levantar qualquer dúvida sobre a seriedade e competências de tais pessoas. O que, creio, importa discutir é esta dicotomia perversa: por um lado, um qualquer sinal de perturbação é automaticamente invadido por uma avalanche de “opiniões” que nem sequer concede à televisão (logo, aos espectadores) a hipótese de apreender um pouco da estranheza dos factos; por outro lado, a informação “satisfaz-se” com o sonambulismo de imagens incessantemente repetidas em que o circunstancialismo individual (a começar pelo telemóvel) ganha estatuto de instrumento mágico de jornalismo.
Na prática, a singularidade de qualquer facto tende a diluir-se num delírio cognitivo que remete a própria realidade noticiada para um plano puramente imaginário — como se não soubéssemos o que estamos a ver, mas acreditássemos na redenção pela “análise”.