quarta-feira, julho 13, 2016

Spielberg — a herança de Disney

STEVEN SPIELBERG
Com O Amigo Gigante, Steven Spielberg reencontra a herança de Walt Disney: este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 Julho), com o título 'A arte de partilhar os sonhos segundo Steven Spielberg'.

Em várias entrevistas sobre o seu novo filme, O Amigo Gigante, Steven Spielberg tem sublinhado o modo como, através dele, reencontrou os valores de um conceito de encantamento e espectáculo cujo símbolo maior continua a ser Walt Disney (1901-1966). É verdade que este é o seu primeiro trabalho produzido pelos estúdios Disney (as suas ligações anteriores à Disney envolveram apenas a distribuição de alguns títulos), mas não é um mero contrato industrial que ele está a valorizar — é a própria relação com o criador do Rato Mickey.
Para Spielberg, nascido em 1946 (completará 70 anos a 18 de Dezembro), a formação como espectador passou pelos clássicos com chancela Disney — por exemplo, Alice no País das Maravilhas (1951), Peter Pan (1953) e A Dama e o Vagabundo (1955) são desenhos animados lançados durante a sua infância. De alguma maneira, ao adaptar o livro de Roald Dahl, The BFG (cuja primeira edição surgiu em 1982), o cineasta de E.T., o Extra-Terrestre (1982) está a reinventar o mais tradicional registo de fábula.
Aliás, a referência a E.T. justifica-se de modo muito especial por causa da gestação do argumento de O Amigo Gigante. Foi Melissa Mathison, nomeada para o Oscar de melhor argumento original com E.T., que escreveu a adaptação do livro de Roald Dahl — faleceu em Novembro de 2015, contava 65 anos, sendo o filme dedicado à sua memória.
Em última análise, E.T. e O Amigo Gigante acabam por ser objectos profundamente diferentes, quer na construção narrativa, quer na execução técnica. Seja como for, é quase inevitável sublinhar as semelhanças dos respectivos núcleos dramáticos. Assim, em ambos os casos a aventura nasce do envolvimento de dois seres que, à partida, pareciam tão distantes quanto inconciliáveis: no primeiro filme, há um menino e um extra-terrestre; agora, temos a pequena Sophie, uma menina que vive num orfanato de Londres, e um gigante que a “rapta” para lhe dar a conhecer o País dos Gigantes, acabando por revelar-se tão grande quanto amigável (BFG = Big Friendly Giant).
Se há uma referência da filmografia de Spielberg que podemos aproximar de O Amigo Gigante será, talvez, a de um dos seus filmes mais esquecidos: Hook (1991), adaptação de Peter Pan, com Robin Williams no papel central. E não apenas pela inspiração literária. Sobretudo porque em ambos os casos a aposta consiste em devolver à fábula o mais puro poder de maravilhamento, criando um mundo cujos artifícios são também uma maneira de celebrar o poder encantatório das linguagens cinematográficas — através de um impecável classicismo, o que está em jogo é a possibilidade de dois estranhos construírem um novo laço afectivo, tão inesperado quanto intenso.
Curiosamente, esse contagiante regresso à tradição revela-se inseparável da aplicação de todo um aparato tecnológico cada vez mais sofisticado e, apetece dizer, “vanguardista”. Assim, no coração do filme está a chamada performance capture, técnica com um desenvolvimento exponencial desde que James Cameron a aplicou no seu Avatar (2009): o registo dos movimentos e expressões dos actores é feito de modo a poder ser transformado em programa de computador, a partir do qual, por sua vez, se pode desenhar “por cima” dos rostos e corpos, criando personagens digitais.
Já utilizada por Spielberg em As Aventuras de Tintin: O Segredo do Licorne (2011), a performance capture é aplicada na concepção de todas as personagens (com destaque para os gigantes, o bom e os maus), com uma excepção: Sophie é interpretada pela quase estreante Ruby Barnhill (inglesa, 11 anos, tinha participado apenas em meia dúzia de episódios de uma série de televisão), contracenando com Mark Rylance, no papel do gigante.
O caso de Rylance, experiente actor inglês do cinema e do teatro (foi director artístico do Shakespeare’s Globe, entre 1995 e 2005), é tanto mais interessante quanto o vimos igual a si próprio, sem apêndices digitais, no filme anterior de Spielberg, A Ponte dos Espiões (que lhe valeu, no passado mês de Fevereiro, o Oscar de melhor actor secundário). Rylance parecer ter-se transformado mesmo num colaborador essencial da actual fase da carreira de Spielberg, já que surge como um dos nomes principais do elenco da sua próxima realização, Ready Player One, um aventura de ficção científica com lançamento agendado para a Primavera de 2018.