quinta-feira, julho 07, 2016

Memórias cinéfilas de Tarzan

[1932]
A estreia de A Lenda de Tarzan é pretexto para uma breve digressão pelo património cinematográfico de Tarzan — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 Julho), com o título '"Me Tarzan, You Jane" ou a utopia do Bom Selvagem'.

É bem provável que, face à nova aventura cinematográfica do “homem-macaco”, intitulada A Lenda de Tarzan, alguns espectadores jovens sejam levados a associar a personagem aos espectáculos de Verão, mais ou menos ligados aos célebres efeitos especiais... Em boa verdade, o herói de Edgar Rice Burroughs chegou aos filmes há quase um século, em 1918, com Tarzan, o Homem Macaco, uma realização de Scott Sidney, com Elmo Lincoln no papel central.
[1914]
Típico de um cinema mudo apostado em rentabilizar os heróis vindos da literatura, é ainda hoje considerado como dos mais fiéis às peripécias do primeiro romance de Burroughs, Tarzan of the Apes, publicado em 1914, mesmo se Lincoln e a sua Jane (Enid Markey) se distinguem por poses mais ou menos lânguidas que não podemos deixar de associar aos pares românticos da época. Seja como for, o filme segue a história da viagem de Lord e Lady Greystoke a África e o modo como a sua morte, na sequência de um motim, deixa o filho entregue, literalmente, à lei da selva: a criança órfã vai crescer no meio dos animais, transformando-se em Tarzan, para vir a descobrir o amor na insubstituível Jane.
Estavam lançadas as bases do Tarzan made in Hollywood: por um lado, a exaltação de uma natureza selvagem ligada a formas de resistência que transcendem o comum dos humanos; por outro lado, a possibilidade da paixão romântica repor uma ordem ideal, para além das convulsões da civilização. Um dos cartazes do filme de 1918 ostentava mesmo esta bizarra frase promocional: “Tarzan não sabia porque é que a acariciou — nunca tinha visto uma mulher branca”.
[1934]
Elmo Lincoln retomou o papel por duas vezes, em The Romance of Tarzan e The Adventures of Tarzan (respectivamente em 1918 e 1921). Em qualquer caso, foi já com o sonoro que Tarzan e Jane encontraram a sua encarnação mais lendária no par Johnny Weissmuller/Maureen O’Sullivan — tudo começou em 1932, com Tarzan, o Homem Macaco, uma realização de W. S. Van Dyke (pioneiro de Hollywood que, durante o período mudo, se distinguira como director de westerns).
Nascido em 1904, Weissmuller “transferiu” para o cinema, não apenas o porte e a elegância de nadador, mas também a sua condição de herói made in USA: várias vezes campeão nacional de natação, arrebatara um total de cinco medalhas de ouro nos Jogos Olímpicos de Paris (1924) e Amsterdão (1928). O’Sullivan, sete anos mais nova que Weissmuller, tinha-se imposto como figura emblemática das comédias românticas do período “pré-código”, quer dizer, antes de, em 1934, o chamado “Código Hays” ter estabelecido uma série de normas morais e visuais, em particular para a encenação das relações amorosas. Na prática, isso reflecte-se nas calculadas sugestões eróticas que contaminam algumas cenas do par em Tarzan, o Homem Macaco e, logo a seguir, Tarzan e a Companheira (1934), única realização de Cedric Gibbons, um dos mais geniais cenógrafos da história de Hollywood.
[1957]
Na galeria de intérpretes do Rei da Selva, ninguém repetiu a fama de Weissmuller. O certo é que a figura de Tarzan nunca desapareceu dos ecrãs. Na transição das décadas de 40/50, a partir de Tarzan e a Fonte Mágica (1949) e até Tarzan e a Mulher Diabo (1953), Lex Barker interpretou cinco títulos cada vez mais distantes das componentes originais de Burroughs. Depois, entre Tarzan e a Selva Misteriosa (1955) e Tarzan, o Magnífico (1960), Gordon Douglas protagonizou mais seis filmes, o segundo dos quais, Tarzan e a Expedição Perdida (1957), seria o primeiro da série em película a cores; ironicamente, ficaria muito mais conhecido pelas aventuras que viria a rodar em Itália, com destaque para Hércules e o Monstro (1963).
Tal como outros géneros cinematográficos centrados em figuras heróicas (sendo o western o exemplo mais revelador), também as aventuras de Tarzan foram objecto de algumas revisões mais ou menos “críticas”. Em Tarzan, o Homem Macaco (1981), triunfou uma espécie de erotismo “paródico” ligado à imagem de uma Jane composta por Bo Derek, símbolo sexual consagrado pela comédia 10 – Uma Mulher de Sonho (1979), de Blake Edwards; com Greystoke, a Lenda de Tarzan (1984), protagonizado por Christopher Lambert, a aposta consistiu em recontar a saga de Tarzan num registo desencantado e “realista”.
Dir-se-ia que Tarzan nos tem garantido a renovação da utopia do Bom Selvagem, até mesmo através dos desenhos animados (a Disney lançou em 1999, com grande sucesso, o seu Tarzan). E podemos sempre sentir um frémito de nostalgia quando pensamos em Johnny Weissmuller a contemplar a sua musa, dizendo: “Me Tarzan, you Jane”. Nem sequer é grave que essa frase mítica não esteja em nenhum filme — foi apenas um resumo sugestivo apresentado por Weissmuller numa entrevista, em 1932.