terça-feira, julho 26, 2016

E as nossas salas ignoraram
um belo filme de Jeff Nichols...


E se, depois de histórias enraizadas entre comportamentos de personagens da América profunda, ao quarto filme Jeff Nichols olhasse para outros horizontes e experimentasse, pela primeira vez, uma narrativa numa dimensão diametralmente oposta à das realidades, medos e assombrações de figuras reais com que até aqui estava a construir uma das mais sólidas obras do cinema americano contemporâneo? Foi o que fez em Midnight Special, filme que tem a alma das memórias sci-fi spielberguianas de uns Encontros Imediatos de Terceiro Grau e E.T. - O Extraterrestre, junta uma evidente contaminação X-Files, mas não perde as marcas de identidade do seu cinema. Midnight Special é tudo isto. E é também um belíssimo filme. Pena que, entra a dinâmica bizarra de um mercado de distribuição nacional que muitas vezes não parece ter explicação, tenha ficado de fora do circuito das salas e surja agora, diretamemente, no circuito de home vídeo (em suportes de DVD e Blu-ray e via VOD).

A primeira qualidade de Midnight Special é a forma como Jeff Nichols - autor de Histórias de Caçadeira (2007), Procurem Abrigo (2011) e Fuga (2012) - não cede à vontade do espectador em querer logo saber o que se passa no ecrã. E durante largos minutos somos confrontados com ações e personagens, sem saber bem o que representam face ao jovem protagonista alegadamente raptado. Sabe-se que é o seu pai natural quem o tem em mãos e que, pelos vistos, o rapaz é dotado de raros e estranhos poderes, tanto que para o seu conforto (ou será defesa de quem o tem a seu lado? – não faço spoiler), ele está obrigado a andar de olhos vedados por uns óculos de natação e dorme com grandes auscultadores nos ouvidos. E, nota adicional, parece que só sai de casa durante a noite (ou, pelo menos, parece ter de evitar a luz do dia). No meio de tudo isto há uma estranha seita religiosa que parece ter lançado o aviso sobre o alegado rapto. E em cena entra ainda o FBI e a NSA, porque valores de segurança de dados secretos surgiram entre os sermões dessa seita. Confusos? Sim, também fiquei. Assim como dei por mim agarrado ao ecrã. Num livro seria um verdadeiro page turner...

Jeff Nichols convoca ecos de uma relação com o desconhecido que têm paradigma nos filmes clássicos de ficção científica que Spielberg realizou precisamente em 1977 e 1982. E junta através da personagem interpretada por Adam Driver uma dimensão à la Mulder e Scully, num domínio da investigação oficial que vive duplamente entre a necessidade de apurar factos e uma curiosidade pessoal sobre aqueles que tem na mira do seu estudo. O que faz de Midnight Special um caso “autoral” no universo do cinema de ficção científica atual é a forma como Jeff Nichols ali colocas as suas marcas pessoais. Que passam pelo reencontro do seu cinema com Michael Shannon (o pai do jovem que está no centro da trama), a forma de projetar (uma vez mais) toda a narrativa na América rural do nosso tempo e a estranheza com que caracteriza a seita que desempenha um papel importante no estabelecimento das muitas dúvidas com que o espectador é confrontado no lançamento da narrativa. O resto? Nada como ver o filme. E ter boas surpresas.