quinta-feira, julho 14, 2016

"Constelações" no Teatro Aberto

Pedro Laginha e Joana Brandão
CONSTELAÇÕES
Quando é que um filme ou um livro realmente nos desafiam? Talvez quando, com eles e através deles, somos levados a questionar ou, pelo menos, a hesitar face às certezas da nossa função de espectadores/leitores. O mesmo se poderá dizer, claro, de uma performance teatral. É isso que acontece quando descobrimos a peça do britânico Nick Payne, Constelações, em cena no Teatro Aberto, numa encenação de João Lourenço, com dramaturgia de Vera San Payo de Lemos.
Se é que a descrição de um qualquer espectáculo nos obriga a partilhar alguma sinopse, digamos que Constelações envolve uma experiência que nos leva a duvidar da própria justeza de qualquer sinopse — ou até da sua mera necessidade. Escreve-se no texto do programa:  "Um homem e uma mulher conhecem-se, apaixonam-se, vivem juntos, separam-se, reencontram-se, reconciliam-se, ou talvez não." O importante nestas palavras está no suspense da pontuação final: ... ou talvez não. Porque cedo deparamos com esse mecanismo insólito, pleno de ironia, que organiza a peça como um tecido de muitos fragmentos que, por assim dizer, se repetem através de subtis variações, sem que haja verdadeira repetição. Como a música de Philip Glass, se assim nos podemos exprimir.
Ele está enraizado nas convulsões da terra: é apicultor. Ela estuda a imensidão dos astros e a sua paixão pelo infinito do cosmos poderá ser encarada como motor simbólico da própria acção, abrindo-nos (para) a possibilidade de a experiência deste momento ser sempre uma variação insondável sobre o enigma de outro momento.
Há uma maneira filosófica de o dizer: como um filme de Alain Resnais, Constelações leva-nos a reconhecer que o espaço é também o lugar que nos escapa e o tempo um código em que nos aconchegamos sem que, em boa verdade, saibamos compreender a sua maquinaria. E haverá também uma maneira quase romântica de descrever tudo isto: esta é uma história de amor, ou melhor, uma fábula sobre a possibilidade sempre em aberto de dois seres construirem uma relação.
No seu rigor, a encenação de João Lourenço, sem esquecer a geométrica austeridade do cenário (concebido por António Casimiro e o próprio encenador), expõe a odisseia do par como uma demanda de um lugar a que, talvez, já tenham acedido sem o saber. Trata-se de convocar o espectador para um misto de realismo e magia em que, no limite, questionamos o próprio conceito de personagem.
Compreende-se, por isso, o imenso desafio que Constelações representa para os seus actores: Joana Brandão e Pedro Laginha. Desde logo, claro, pelas modulações de voz e pose com que, em sucessivos fragmentos, têm de dizer as "mesmas" palavras. Mas sobretudo porque o texto de Nick Payne os obriga a existir numa no man's land — que é também uma no woman's land — em que todos os comportamentos estão marcados pela certeza da morte.
Peça fúnebre, então? O contrário, em boa verdade. A morte, a própria sugestão de eutanásia que perpassa em algumas situações, é apenas uma personagem como as outras — não muito sociável, é certo, mas igualmente envolvida no maravilhoso jogo do espaço e do tempo. Até porque Constelações é também uma peça sobre a hipótese da dança. Metáfora? Sem dúvida, a dança da vida e da morte. Mas também em sentido literal: um pé que avança, outro que recua, dois corpos a inventar uma unidade.