2001: ODISSEIA NO ESPAÇO (1968) |
Os recentes acontecimentos marcados por diversas formas de violência permitiram perceber que a reflexão das televisões sobre as suas próprias linguagens continua a ser profundamente deficitária — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 Julho).
Primeiro, julguei que era um delírio meu face à vertigem de muitas imagens recentes. A pouco e pouco, verifiquei que era uma coincidência. Mais do que isso, um padrão de comportamento: nas mais variadas cadeias televisivas de todo o mundo, alguns comentadores de acontecimentos horríveis (o ataque terrorista em Nice, os tiroteios na Turquia, etc.) vão pontuando as suas intervenções com analogias mais ou menos simbólicas, derivações mais ou menos irónicas, por vezes com risinhos mais ou menos sarcásticos.
Ainda e sempre surge a pergunta que quase ninguém quer formular: como representamos a violência? E digo “quase ninguém” porque, de facto, não estou a discutir a profilaxia ingénua da bolinha vermelha no canto superior direito do ecrã. Num tempo em que ninguém diz nada sobre o horror moral e quotidiano do Big Brother e seus derivados (veja-se Love on Top), triunfou o recalcamento de qualquer análise das imagens que nos chegam, instantaneamente, de todos os recantos do planeta.
Por exemplo: que acontece quando, num só dia, somos confrontados centenas de vezes com os breves segundos de imagens mais ou menos turbulentas, registadas no telemóvel de um qualquer cidadão anónimo? Ou ainda, e sobretudo: porque é que tais imagens adquiriram o estatuto de matéria, prova e caução de trabalho jornalístico?
Infelizmente, o possível espaço de reflexão sobre tão delicadas questões tende a ser bloqueado por uma reacção corporativa que não ajuda ninguém. A sua pergunta mais frequente, implícita ou explícita, é esta: “... mas então as televisões são culpadas pelos actos de violência?”.
Escusado será dizer que seguir por esse caminho só pode minimizar a inteligência de todos os envolvidos. Enquanto nos perdemos nos labirintos da “culpa”, evitamos lidar com a questão central. A saber: a responsabilidade de produzir e difundir imagens.
O tema é tanto mais actual quanto passámos a viver num mundo saturado de hipóteses de acesso a qualquer imagem, em qualquer momento, em qualquer lugar. Há muito que o ecrã de cinema deixou de ser o lugar sagrado de acesso à pluralidade imensa das imagens (que não se podiam ver em nenhum outro contexto). Em boa verdade, passámos a viver num universo audiovisual em que, para o melhor e para o pior, a proliferação de ecrãs é a regra, não a excepção (dos computadores aos sistemas de segurança, passando, claro, pelos telemóveis).
Lembro-me de 2001: Odisseia no Espaço, o filme de Stanley Kubrick lançado em 1968. Na viagem dos seus astronautas, na sua relação com o inquietante computador Hal 9000, estava já figurada essa perversa transfiguração da realidade através dos ecrãs. E não deixa de ser desconcertante que o génio premonitório de alguns filmes pese cada vez menos no pensamento sobre os nossos modos de vida. Entre outras conclusões, isso obriga-nos a reconhecer a solidão contemporânea do trabalho crítico sobre os filmes.