quinta-feira, julho 28, 2016

As fábulas de Steven Spielberg

Ruby Barnhill e Steven Spielberg
— rodagem de O Amigo Gigante
O discreto impacto de O Amigo Gigante, de Steven Spielberg, será, talvez, corrigido com o passar dos anos; afinal de contas, ele está apenas a ser fiel aos mais genuínos valores da fábula — este texto está publicado na edição nº 40 da revista Metropolis, com o título 'Spielberg, autor de fábulas'.

Ciclicamente, o nome de Steven Spielberg suscita controvérsias mais ou menos agitadas (e mais ou menos interessantes...). Assim, há aqueles que o preferem enquanto herdeiro dos valores clássicos da aventura, revistos e relançados através da saga de Indiana Jones. Como contraponto, outros celebram, antes de tudo o mais, a gravidade dos temas que desemboca na notável abordagem do Holocausto, em A Lista de Schindler (1993). Outros ainda, consideram que o Spielberg mais “puro” é aquele que está no mais universal dos seus filmes. A saber: E.T., o Extraterrestre (1982).
Walt Disney
Esta última vertente da sua filmografia será mesmo, muito provavelmente, a mais citada a propósito do novo filme, O Amigo Gigante, baseado no conto clássico de Roald Dahl, The BFG, e estreado no Festival de Cannes do passado mês de Maio. E não há dúvida que o paralelismo se justifica. Desde Hook (1991), uma revisão algo esquecida da história de Peter Pan, que não apostava num registo tão próximo do imaginário infantil — sem esquecer, a esse propósito, que importa não escamotear o lugar fundamental do maravilhoso Império do Sol (1987), retrato da guerra filtrado pelos olhos de uma criança que, salvo melhor opinião, continua a ser um dos filmes mais pessoais de Spielberg.
Nesta perspectiva, é interessante referir o paradoxo, porventura a contradição, em que descobrimos O Amigo Gigante. Assim, por um lado, este será o trabalho em que Spielberg mais claramente se aproximou (e quis aproximar) de um conceito de maravilhoso cujo símbolo mais forte, no interior da história de Hollywood, é Walt Disney (1901-1966). Ao mesmo tempo, por outro lado, numa espécie de reconhecimento e chancela, O Amigo Gigante é o primeiro filme de Spielberg produzido pelos estúdios Disney... mesmo se a respectiva distribuição fora dos EUA não é da sua responsabilidade.
O Amigo Gigante produz uma espécie de efeito retroactivo, de alguma maneira ajudando-nos a (re)ver a carreira de Spielberg sob o seu efeito simbólico. Podemos até arriscar dizer que, mesmo quando apostou em abordagens marcadamente realistas — para além de A Lista de Schindler, lembremos as histórias mais “políticas” de Munique (2005) ou do recente A Ponte dos Espiões (2015) —, ele nunca foi um cineasta estranho à energia muito peculiar da fábula. A saber: ao modo como as acções humanas, enraizadas na história colectiva ou no mais puro artifício espectacular, envolvem sempre um confronto entre a evidência do Mal e a possibilidade do Bem. Alguns dirão que não é fácil definir o problema desse modo porque nem sempre são nítidas as fronteiras entre uma coisa e outra... Justamente: os filmes são também sobre essa dificuldade.
Será preciso acrescentar que, mais do que nunca, a caracterização de Spielberg como “mago dos efeitos especiais” se revela totalmente inadequada? Não que ele seja estranho às convulsões tecnológicas das últimas décadas e aos seus tão peculiares efeitos na arquitectura industrial e comercial do cinema — veja-se, por exemplo, a integração da chamada “performance capture” (com a criação de personagens digitais a partir do trabalho dos actores), essencial em As Aventuras de Tintin: O Segredo Licorne (2011) e, agora, em O Amigo Gigante. Seja como for, nunca Spielberg escolheu os “efeitos especiais” como um fim em si mesmo. Muito simplesmente, ele é um autor que se mantém fiel à sua condição de contador de histórias — condição primitiva, apetece dizer, de tal modo a sua postura o mantém numa intensa relação criativa com o riquíssimo património de Hollywood.