Com o filme Amor e Amizade, adaptado de uma novela de Jane Austen, o cineasta independente Whit Stillman reencontra o sabor de um certo romanesco clássico — este texto foi publicado no Diário de Notícias (2 Julho), com o título 'Independente e clássico'.
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Há um paradoxo feliz na gestação de um filme como Amor e Amizade. De facto, não haverá muitos autores americanos como Whit Stillman: desde a sua revelação com Metropolitan (1990) e Barcelona (1994), há nele uma postura criativa que se distingue por uma obstinada independência; ao mesmo tempo, ao adaptar Lady Susan, uma novela esquecida de Jane Austen, Stillman remete-nos para um gosto narrativo em que ecoam os valores muito clássicos de uma produção de Hollywood (sobretudo nos anos 30/40, após a eclosão do sonoro) apostada numa sofisticada relação criativa com o património literário.
Estaremos, então, perante algo que se possa comparar com Margarida Gauthier (1936), a versão de A Dama das Camélias assinada por George Cukor e protagonizada por Greta Garbo? Enfim, com ou sem nostalgia, é duvidoso que a fábrica de Hollywood que passou a privilegiar “super-heróis” e efeitos especiais tenha, sequer, alguma memória consistente de Garbo... E mesmo considerando que Kate Beckinsale, na personagem de Lady Susan Vernon, tem aqui uma das suas mais elaboradas interpretações, convenhamos que há coisas que, pura e simplesmente, não se repetem.
Acontece que Stillman valoriza uma lógica que, no seu insólito “vanguardismo”, possui raízes visceralmente clássicas. Celebra-se o gosto da palavra, não como mero instrumento de “comunicação” entre personagens, antes funcionando como matéria de organização de todas as relações, desde as mais secretas às mais expostas aos códigos dominantes de comportamento social. Amor e Amizade é, assim, um filme em que a acção se confunde com as atribulações presentes nos diálogos. Dito de outro modo: há blockbusters capazes de destruir uma cidade digital em poucos segundos sem conseguir qualquer vibração idêntica às que circulam por este filme serenamente “antigo”.