quinta-feira, junho 16, 2016

Robert Bresson não jogou futebol

Um grande acontecimento na área do DVD: a edição do clássico francês Fugiu um Condenado à Morte, de Robert Bresson — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 Junho).

Observo a capa do recente lançamento em DVD de Fugiu um Condenado à Morte (1956), de Robert Bresson, e não posso deixar de sentir uma amarga ironia. A imagem emblemática de François Leterrier, espreitando por uma janela com grades, no papel de um resistente francês feito prisioneiro pelos nazis, foi colorida (ou “colorizada”, como se diz na gíria do marketing cinematográfico), alterando o magnífico preto e branco do original.
Não é uma questão portuguesa, entenda-se (a mesma imagem serve também de capa às edições francesas do filme, em DVD e Blu-ray). Aliás, mais do que nunca, importa elogiar o importantíssimo trabalho de algumas distribuidoras/editoras que estão longe de ser líderes de mercado (neste caso, a Alambique) e se têm empenhado em dar a ver muitos títulos clássicos da história do cinema. Aqui, estamos mesmo perante uma das obras-primas do período pré-Nova Vaga, essencial para conhecermos esse génio da depuração das formas cinematográficas que foi Bresson.
ROBERT BRESSON
(1901 - 1999)
Trata-se apenas de reconhecer que este tratamento da imagem está influenciado por um preconceito que o espaço televisivo se encarregou de exponenciar, promovendo a ignorância. De facto, uma imensa percentagem da história do cinema é feita de filmes a preto e branco e supor que as “cores” correspondem a um estado “superior” da imagem favorece um triste grau de (des)conhecimento.
Não tenhamos ilusões: haverá um saber muito mais solidificado (e também muitíssimo mais difundido e promovido pelo espaço televisivo) em torno de outro facto ocorrido em 1956. A saber: a primeira final da Taça dos Campeões Europeus em futebol (antecedente da actual Liga dos Campeões), ganha pelo Real Madrid ao Stade de Reims, numa altura em que os espanhóis eram liderados pelo lendário Alfredo Di Stéfano.
Há ainda outra maneira de dizer tudo isto: temos assistido ao triunfo de uma cultura audiovisual, gerida por valores televisivos, em que o futebol foi imposto como padrão dominante de informação, conhecimento e patriotismo, recalcando muitas outras áreas da actividade humana, em geral, e das actividades artísticas, em particular.
Se Robert Bresson tivesse sido um jogador de futebol, não tenhamos dúvidas que a sua herança desfrutaria automaticamente de outra visibilidade — e também de outro tipo de valorização. Assim, ele é “apenas” alguém que encenou a odisseia de um resistente ao nazismo, experimentando uma linguagem em que a organização do espaço, a gestão do tempo e, em particular, o labor específico do actor obedeciam a parâmetros genuinamente revolucionários.
Por alguma razão, Bresson gostava de dizer que não fazia cinema, mas... cinematógrafo (escreveu mesmo um livro admirável intitulado Notas sobre o Cinematógrafo, entre nós editado pela Porto Editora). Ele era o primeiro a não ignorar que a sua arte desafiava a preguiça dos valores narrativos dominantes.