Pablo Larraín confirma a singularidade do seu trabalho histórico e cinematográfico com O Clube — este texto foi publicado no Diário de Notícias (9 Junho), com o título 'Filme chileno coloca em cena temas e fantasmas da fé católica'.
A ironia é transparente: numa sociedade de raízes profundamente católicas, neste ano da graça de 2016, corremos o risco de sermos afogados pelas peripécias em torno da selecção de futebol, não exactamente por estarmos a reflectir sobre um filme tão admirável como O Clube, do chileno Pablo Larraín [Urso de Prata em Berlim], mergulhando, precisamente, nos temas e fantasmas da fé católica. Há uma maneira muito simples de descrever tal estado de coisas: os valores culturais dominantes deixaram de passar pela oferta cinematográfica, dependendo tão só das narrativas de raiz televisiva.
O assunto é tanto mais delicado quanto a história que se conta em O Clube é, por certo, das coisas mais subtis e também mais perturbantes que, nos últimos tempos, temos podido descobrir no espaço cinematográfico. Assim, o “clube” a que o título se refere é, na verdade, uma casa tão discreta quanto austera, numa praia esquecida do Chile, que foi criada com um fim muito objectivo: recolher padres católicos que cometeram crimes de pedofilia ou, de alguma maneira, se apropriaram de crianças nascidas de mães solteiras. Penetramos em tal universo, começando por tomar conhecimento dos rituais de treino de um cão, a cargo de um dos protagonistas, visando a participação em corridas que se organizam naquela zona. A certa altura, a aparente estabilidade desse microcosmos de muitos silêncios e recalcamentos é abalada pelo aparecimento de um homem que se identifica como alguém que, em criança, foi vítima de um dos habitantes da casa...
A inocência e a culpa
Digamos, sem qualquer equívoco, que Larraín é um cineasta demasiado brilhante para transformar o seu filme numa arena sanguinária de “prós” e “contras” em torno da instituição e valores católicos. Em boa verdade, tal hipótese acabaria por favorecer uma generalização “abstracta” que, em tudo e por tudo, é alheia ao seu programa narrativo. Para além de qualquer anti-clericalismo primário, o que distingue O Clube é a sua concentração obsessiva na claustrofobia de um mundo em que, subitamente, todos os valores adquiridos parecem irremediavelmente desgastados — já nem sobrevive a segurança moral que, em tempos ideais, opôs as noções de inocência e culpa.
Não por acaso, através de alguns detalhes, vamos pressentindo as memórias da ditadura de Augusto Pinochet. Tais memórias constituem matéria fulcral da obra de Larraín, estando na base da trilogia formada por Tony Manero (2008), Post Mortem (2010) e Não (2012). Aquilo que um filme como O Clube questiona não são tanto os crimes de personagens circunstanciais, mas sim a persistência de uma ordem moral que recusa lidar com as suas próprias contradições.
Não é todos os dias que descobrimos, assim, um filme capaz de construir um retrato feito de tantos particularismos geográficos e culturais, ao mesmo tempo lançando ao seu espectador uma interrogação universal. A saber: quais os valores que sustentam uma determinada ordem do mundo? Mais ainda: esses valores são capazes de enfrentar as contradições do ser humano ou limitam-se a enredá-lo numa noção simplista de pureza? Grande filme, grande debate em aberto.