quarta-feira, junho 29, 2016

Aprender a ver com Álvaro Siza

AS ASAS DO DESEJO (1987)
Um trabalho sobre Álvaro Siza, da autoria de Cândida Pinto, com produção de Manuela Durão, mostra como é possível fazer televisão de modo exigente e inventivo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 Junho).

Para onde vai o documentarismo contemporâneo? Será que, tendo em conta a presença que conquistou nos circuitos cinematográficos, vive uma etapa de reconversão e reinvenção? Ou estará antes confinado a modelos televisivos que, melhor ou pior, vão tendo um lugar mais ou menos discreto no pequeno ecrã? São perguntas que vale a pena enfrentar para além de qualquer fronteira estável e definitiva — dois documentários sobre o arquitecto Álvaro Siza, recentemente difundidos pela SIC Notícias, relançam a questão.
Devo mesmo acrescentar que já há algum tempo não deparava, assim, com uma ideia antiga, porventura fora de moda, mas que continua a fascinar-me. A saber: a televisão não tem de ser uma colagem de fragmentos breves e acelerados que transformam o mundo num turbilhão de telediscos (com o devido respeito pelo que é genuíno na história dos telediscos). Mais do que isso: a televisão pode existir muito para além da reprodução incessante dos mesmos dispositivos mecanicistas, supostamente universais (o repórter que fala para a câmara, a voz off que descreve tudo de forma redundante como os comentadores dos jogos de futebol, etc.).


Que está, então, em jogo? Cândida Pinto (autoria) e Madalena Durão (produção) fizeram dois documentários, de pouco mais de 35 minutos cada um, construídos a partir de trabalhos de Álvaro Siza: num deles, Bonjour Tristesse, tomamos conhecimento de um edifício emblemático de Berlim concebido pelo arquitecto em meados da década de 80 (o título provém de um graffiti que alguém inscreveu na fachada); no outro, Vizinhos, recorda-se um projecto de habitação social da segunda metade dos anos 90, na Giudecca, em Veneza (não concluído na época, relançado graças à escolha dessa ilha para receber o pavilhão português na Bienal deste ano).
Os dois pequenos filmes envolvem importantes contribuições — cito, por exemplo, o trabalho de imagem (Rodrigo Lobo) e montagem (Marco Carrasqueira) — cuja sofisticação e rigor estão muito para além dos padrões correntes em todos os canais portugueses de televisão. Em todo o caso, seria simplista reduzir os seus valores a qualquer virtuosismo “tecnicista”. Nada disso. O que aqui mais conta é, justamente, a arte de ver e dar a ver, levando-nos a observar os objectos arquitectónicos como elementos viscerais de todas as vivências humanas. Como, a certa altura, diz Álvaro Siza, mergulhando no “encantamento absoluto” de Veneza, “o arquitecto aprende vendo” — por isso, é também alguém que “tem de aprender a ver”.
Face a Veneza e Berlim, a perversão cinéfila fez-me pensar em imagens de Morte em Veneza (1971), de Luchino Visconti, e As Asas do Desejo (1987), de Wim Wenders. Porque o cinema é “superior” à televisão? Não, apenas porque a televisão só ganha (e ganhamos todos nós) se souber inscrever-se numa história estética e ética que começou, há mais de um século, com a aventura cinematográfica.
MORTE EM VENEZA (1971)