quarta-feira, junho 08, 2016

Angelina Jolie — amor de perdição

Um belo filme de e com Angelina Jolie, contracenando com o marido, Brad Pitt. Grande estreia nas salas? Não: directo para DVD... — este texto foi publicado no Diário de Notícias (4 Junho), com o título 'Angelina Jolie filma os enigmas da intimidade'.

Recentemente, alguns tablóides de língua inglesa voltaram a especular sobre uma crise do casal Angelina Jolie/Brad Pitt. Convenhamos que o caso não merece especial atenção, já que o tom das notícias não era um primor de jornalismo (mesmo que nelas houvesse algum elemento verídico...), e também porque há coisas mais sérias e, sobretudo, mais inteligentes para fazer com o poder de informar e fazer opinião.
Ainda assim, conhecendo o tipo de “pensamento” de tais tablóides, não deixa de ser surpreendente que nenhum tivesse arriscado alguma “comparação” com o novo filme realizado por Angelina Jolie: chama-se By the Sea, encena a crise aguda de um casal e tem como intérpretes principais... Angelina Jolie e Brad Pitt!
Em boa verdade, tal silêncio tem uma justificação desconcertante. A saber: quase ninguém viu o filme. Além de ter sido um desastre de bilheteira nos EUA (pouco mais de meio milhão de dólares de receita para um orçamento de 10 milhões), estreou em muito poucos países (onde não chegou a render 3 milhões) e, na esmagadora maioria dos mercados, só estará disponível em DVD — chega às lojas portuguesas na quarta-feira, dia 8, com o título Junto ao Mar.
Há pelo menos duas razões que podem ajudar a explicar o fenómeno — porque de fenómeno se trata, já que estamos a falar da marginalização comercial de um objecto que ostenta os nomes de duas genuínas estrelas de cinema que, mais do que isso, são celebridades planetárias.

Sob o signo do marketing

A primeira dessas razões decorre de uma lógica perversa que passou a contaminar o marketing global de Hollywood, em última instância prejudicando o conhecimento da sua imensa (e fascinante) diversidade criativa. Os decisores desse mesmo marketing tendem a considerar que um falhanço nas salas dos EUA está condenado a ser, automaticamente, um falhanço em qualquer outro mercado. Mesmo reconhecendo que se trata de um problema complexo, que não pode ser reduzido à performance de um filme isolado, vale a pena lembrar um dado que os estúdios americanos bem conhecem: há cada vez mais produções de Hollywood que obtêm mais de 50% das respectivas receitas fora dos EUA, nomeadamente na Europa e nos grandes mercados asiáticos (exemplo extremo e extremamente sintomático: Mundo Jurássico, um dos grandes sucessos de 2015, fez 60% da sua receita fora dos EUA).
A segunda razão para a hecatombe de Junto ao Mar é a mais interessante, e também a mais paradoxal, uma vez que decorre das suas características específicas, quer dizer, de tudo aquilo que o faz ser um singularíssimo objecto de cinema. Dito de outro modo: na sua delicada sensibilidade e no seu intransigente rigor formal, Junto ao Mar não é um filme “simples”... Ou será exactamente o contrário? Não será que, ao colar-se às emoções mais puras, à flor da pele, interessando-se em particular pela sua expressão através dos rostos e corpos dos actores, Angelina Jolie está a fazer o mais “complicado” dos filmes, não cedendo aos vícios de um tempo em que se confunde o espectáculo com a patética acumulação de efeitos especiais?

Para além da “psicologia”

Complicados, convenhamos, são os filmes de super-heróis: o primarismo narrativo em que descambaram, “disfarçado” pela sua agressividade visual e, sobretudo, pela sua violência sonora, tende a fazer esquecer que o cinema é também um exercício de contemplação e, nos seus momentos mais intensos, uma suave arte da escuta.
Junto ao Mar é um filme feito disso mesmo. E para isso mesmo. Que é como quem diz: uma cadeia de instantes em que as palavras parecem falhar como instrumentos de comunicação, dando lugar aos silêncios que, por vezes da forma mais amarga, nos aproximam de uma verdade radical e irrecusável, eventualmente libertadora.
Na prática, seguimos a história de Vanessa (Jolie), uma ex-bailarina, e Roland (Pitt), um escritor cuja criatividade bloqueou... Algures em meados da década de 1970, tentam encontrar alguma hipótese de redenção no cenário paradisíaco de um praia no sul de França (a rodagem decorreu, de facto, em Malta). Graças a um acaso cruel, mas pleno de ironia, vão reviver os impasses da sua relação através do modo como espiam (literalmente, através de um buraco na parede do seu quarto) um outro casal (Mélanie Laurent/Melvil Poupaud). Dir-se-ia um teatro psicanalítico: cada ser existe através da sua duplicação imaginária. Ou ainda: o amor é esse resto inefável que nos faz perceber que o encontro com o outro envolve sempre alguma forma de perdição.
Não será por acaso que este é um filme visceralmente europeu. Pelos cenários, claro, mas também pelo modo como relança alguns pressupostos de algum cinema europeu das décadas de 60/70. Vem à memória, por exemplo, esse misto de ansiedade e mágoa, cenários naturais e luz radiosa, que encontramos no Michelangelo Antonioni dos tempos de A Aventura (1960). Contra o determinismo dos retratos “psicológicos”, Angelina Jolie fez um filme sobre os enigmas que a intimidade envolve e, num certo sentido, atrai. Provavelmente, Junto ao Mar é apenas o mais simples dos filmes — nos nossos dias de muitos “likes” e poucos pensamentos, paga-se um preço por assumir tão cristalino olhar.