Ao longo de Maio e Junho, toda a obra de Vincente Minnelli pode ser (re)vista na Cinemateca — este texto foi publicado no Diário de Notícias (8 Maio), com o título 'Quando Minnelli contribuía para a idade de ouro do musical'.
No cinema musical existe uma esplendorosa aristocracia em que o apelido Minnelli só pode suscitar a nossa humilde reverência. Perguntará o leitor: por causa de Liza, a admirável actriz/cantora que, em 1973, ganhou um Óscar com Cabaret? Sim, mas antes de tudo o mais por quem lhe deu o nome e, por certo, a inspiração. Ou seja, o seu pai: Vincente Minnelli (1903-1986).
Num mês marcado pelas relações entre cinema e música (incluindo um ciclo dedicado a Bob Dylan), a Cinemateca apresenta uma retrospectiva integral de Minnelli que dispensa, e muito bem, as obrigações cronológicas. Assim, durante o mês de Maio, podemos ver ou rever os seus filmes musicais (seguindo-se, em Junho, as comédias, dramas e melodramas). E porque as cumplicidades familiares não são estranhas a tão radiosas memórias, convém acrescentar que esta é uma história que inclui também como muito especial protagonista a mãe de Liza Minnelli, a sublime Judy Garland (1922-1969).
Rezam as crónicas que o casamento entre Vincente Minnelli e Judy Garland não foi o paraíso na Terra, tendo durado menos de seis anos, com o divórcio a ser oficializado em meados de 1951. A paixão surgiu em 1944, durante a rodagem do belíssimo Não Há como a Nossa Casa, centrado nas atribulações de uma família de St. Louis, Missouri, tendo por pano de fundo a Exposição Mundial de 1904 — o filme persiste como uma delicada ilustração da utopia familiar “made in USA”, pontuada por algumas das mais célebres canções de toda a carreira de Judy Garland (incluindo The Trolley Song). O realizador voltou a dirigir a sua mulher em 1948, em The Pirate/O Pirata dos Meus Sonhos, uma celebração irónica dos filmes de piratas, com música de Cole Porter e Gene Kelly no papel central.
O nome de Gene Kelly é, obviamente, indissociável do universo musical de Minnelli. O cineasta voltaria dirigi-lo em Um Americano em Paris (1951), um dos símbolos mais universais do género (a par de Serenata à Chuva, lançado um ano mais tarde), e no prodigioso Brigadoon (1954), nem sempre devidamente lembrado. Encenando a lenda de uma aldeia escocesa, totalmente fabricada em estúdio, Brigadoon — entre nós chamado A Lenda dos Beijos Perdidos — ilustra o gosto de exploração das ambíguas ligações entre realidade e fantasia, de acordo com uma lógica de espectáculo cujas apoteoses estão nos bailados de Kelly com Cyd Charisse. Curiosamente, a consagração nos Oscars só surgiria em 1959, com Gigi, protagonizado por Leslie Caron e Maurice Chevalier (nove estatuetas douradas, incluindo melhor filme e melhor realização).
Para além de Judy Garland, Gene Kelly e Cyd Charisse, importa não esquecer o nome de Fred Astaire como figura fundamental no universo de Minnelli. Dirigiu-o em algumas sequências do filme colectivo Ziegfeld Follies (1945) e ainda em Yolanda e o Vigarista (1945) e The Band Wagon/A Roda da Fortuna (1953), este cruzando a lógica do musical como a iconografia dos filmes de gangsters.
Enfim, esta é uma história que não fica completa sem citar o nome fulcral de Arthur Freed (1894-1973), o produtor da Metro Goldwyn Mayer a quem se deve, em grande parte, a idade de ouro do musical. Para além dos filmes de Minnelli, o seu nome está ligado a títulos igualmente marcantes como Um Dia em Nova Iorque (1949) ou o já citado Serenata à Chuva. Freed pode mesmo simbolizar uma ideia de produtor como cúmplice criativo de cineastas, actores e técnicos, essencial para compreendermos todas as glórias do classicismo de Hollywood.