sexta-feira, maio 06, 2016

O outro lado de Bob Dylan

Bob Dylan e D. A. Pennebaker
A Cinemateca apresenta um fabuloso ciclo dedicado a Bob Dylan: canções e colaborações, representações e realizações — este texto foi publicado no Diário de Notícias (2 Maio), com o título 'Bob Dylan e o cinema: uma longa cumplicidade'.

Bob Dylan está quase a fazer 75 anos (a 24 de Maio). E não pára: por esta altura, anda mesmo empenhado numa digressão a que deu o nome de ‘Never Ending Tour’. É uma boa altura para recordar como a sua história gloriosa possui também um importante capítulo cinematográfico.
A contabilidade é esmagadora: se consultarmos o site IMDb, ficamos a saber que, entre cinema e televisão (sem esquecer os jogos de vídeo), as suas composições surgem em quase seis centenas de títulos. É essa pluralidade que vai ser celebrada por um ciclo de 25 filmes, a decorrer a partir de hoje na Cinemateca — parafraseando o título do seu quarto álbum de estúdio (Another Side of Bob Dylan, 1964), o evento chama-se ‘O outro lado de Bob Dylan’.
De facto, são muitos os lados de Dylan que podemos descobrir ou redescobrir. Desde logo, porque as suas canções vão pontuando o último meio século da história do cinema americano, incluindo o filme que abriu o ciclo: A Propósito de Llewyn Davis (2013), de Joel e Ethan Coen, é mesmo o retrato da cena folk de Greenwich Village, na passagem da década de 50 para os sixties, desembocando na revelação de um tal Robert Allen Zimmermann, aliás, Bob Dylan.
O ciclo inclui alguns títulos cuja cumplicidade com Dylan resulta “apenas” da utilização de alguns dos seus temas mais famosos. São escolhas plenas de ressonâncias históricas ou simbólicas. Por exemplo, em Easy Rider (1969), título de culto que fez o balanço das ilusões e desilusões dos anos 60, surge It’s Allright Ma (I’m Only Bleeding), enquanto Just Like a Woman integra Coming Home/O Regresso dos Heróis, de Hal Ashby, produção de 1978 que foi um dos primeiros filmes com chancela de um grande estúdio (United Artists) a abordar os traumas da guerra do Vietname.
A via documental será a que mais associamos à persona cinematográfica de Dylan. E há boas razões para isso, a começar por Dont Look Back (1967), de D. A. Pennebaker, presença já tradicional nas listas dos melhores documentários de sempre — no top coligido pela revista britânica Sight & Sound, em 2015, através de um inquérito internacional a mais de três centenas de cineastas, críticos e programadores, surge em nono lugar (a lista é encabeçada por O Homem da Câmara de Filmar, de Dziga Vertov, 1929).
Dont Look Back constitui um testemunho tão intenso quanto linear. Pennebaker achou mesmo que a simplicidade do empreendimento se devia reflectir no próprio título, suprimindo o apóstrofo da negativa do verbo, escrevendo “dont” em vez de “don’t” (no mercado português, foi utilizado o título mais prosaico Eu Sou Bob Dylan). Estamos perante um momento fulcral na evolução de Dylan, em particular por causa da sua digressão britânica de 1965, com a muito polémica integração de guitarras eléctricas. Não por acaso, este é também um filme em que emergem sinais contundentes da resistência de Dylan à exposição jornalística, sobretudo através do registo de uma célebre, e pouco cordial, entrevista com um repórter da revista Time.
A herança iconográfica e simbólica de Dont Look Back envolve mesmo uma sequência que se pode considerar premonitória da estética dos telediscos, com Dylan a apresentar, através de uma sucessão de cartões, a letra da canção Subterranean Homesick Blues (do álbum Bringing It All Back Home, 1965).


Uma das situações emblemáticas do filme, com Dylan num automóvel, incomodado com a agitação dos fãs no exterior, serviu de base a uma cena de I’m Not There, filme de 2007 com o qual Todd Haynes revisita o imaginário do músico, entregando a sua personagem a vários intérpretes — nessa cena, Dylan surge composto por Cate Blanchett!
O ciclo inclui também duas experiências lendárias em que Dylan, resistindo sempre aos filmes dos outros, assumiu a própria realização: Eat the Document (1972), para o qual voltou a mobilizar Pennebaker, agora como operador, e Renaldo and Clara (1978), misto de reportagem e exercício confessional. Sem esquecer o bizarro e fascinante Pat Garrett and Billy the Kid (1973), de Sam Peckinpah, notável western “revisionista" em que, além da autoria da banda sonora, Dylan surge também como actor.