Por muitas faltas em que incorra, a ópera Prima Donna acabou por ser um possível momento de viragem na carreira de Rufus Wainwright (e digo “possível” porque só a passagem do tempo o poderá confirmar). Rufus tinha já trabalhado com suportes orquestrais, quer no imponente díptico Want ou na visão que levou a palco uma noite célebre de Judy Garland no Carnegie Hall... Mas ao compor uma ópera aprofundou necessariamente um pensamento sobre a versatilidade cromática e tímbrica que a presença de uma orquestra implica, juntando ainda um primeiro ensaio no domínio do canto lírico (naturalmente na voz dos outros). Essas experiências, mesmo tendo ganho forma numa ópera que nasce demasiado assombrada sob o peso referencial da memória de Verdi e revela um caso mais próximo do pastiche do que de uma visão da linguagem do teatro musical do nosso tempo, ajudaram contudo a abordar este outro passo discográfico com conhecimento, segurança e... ousadia. E eis que, assim, em Take all My Lovers: 9 Shakespeare Sonets, encontramos o melhor disco de Rufus Wainwright desde que, em 2004, nos deu a ouvir as canções de Want Two.
Convém dizer desde já que esta não representa a primeira abordagem de Rufus Wainwright à obra de Shakespeare. Robert Wilson convidou-o, há uns anos, para criar música para uma produção teatral baseada nos sonetos de Shakespeare. Mais adiante, a San Francisco Symphony solicitou arranjos para cinco dos sonetos para os quais já havia composto a música. E, pelo caminho, três deles tinham já encontrado gravação na sua voz, com apenas o piano por perto, no álbum All Days Are Nights: Songs For Lulu. Com todo este corpo de experiências por base, Take all my Lovers nasceu como uma natural extensão de um trabalho continuado em volta de Shakesperare. E, com um elenco de cantores, atores, chamando novamente a cena Marius de Vries (o seu parceiro em Want), eis que nasce um disco que nem é pop nem clássica, nem álbum de canções, nem teatro musical... Mas que é tudo isso ao mesmo tempo. E nas medidas certas.
A Rufus Wainwright cabe aqui a ideia, a composição e apenas algumas das interpretações, sendo que em Take all my Loves, o fulguroso Unperfect Actor (onde a intensidade das guitarras elétricas acolhe ainda a presença das vozes de Helena Bonham Carter, Martha Wainwright e Fiora Cutler), uma nova versão de A Woman’s Face (em cujas palavras habita um interessante discurso sobre identidade de género) ou em All Dessen Müd (o Soneto 66, lido e cantado em alemão, num momento de intensa dimensão dramática partilhado com Christopher Nell e Jürgen Holtz que evoca heranças de um Kurt Weill), encontramos as suas melhores canções dos últimos tempos. À sua voz juntam-se ainda, mas como protagonistas nas respetivas canções, as de Anna Prohaska (soprano e a mais presente das vozes no alinhamento) ou Florence Welsh, e ainda, recitando, as de atores como Sian Phillips, William Shatner, Carrie Fischer ou Peter Eyre.
Nos 400 anos da sua morte, Shakespeare tem aqui uma das mais interessantes abordagens pela música que a sua obra e memória conheceram nos últimos tempos. E com este disco Rufus Wainwright parece ter encontrado um novo caminho, no qual as suas duas facetas - a pop e a clássica (aqui juntando heranças do romantismo às vivências da música de teatro que fez escola na Broadway) - convivem e dialogam em sintonia. Agora sim, a sua presença na Deutsche Grammophon traz algo de novo à história da editora da cartela amarela.