domingo, maio 08, 2016

Memórias de José Fonseca e Costa

A estreia de Axilas, derradeiro filme de José Fonseca e Costa, é pretexto para uma revisitação de alguns títulos emblemáticos da sua filmografia — este texto foi publicado no Diário de Notícias (4 Abril), com o título 'Um cineasta seduzido pelas grandezas e misérias dos seres humanos'.

Será que existe um cinema picaresco português? A pergunta não é tanto histórica como simbólica. Não se trata de encontrar cauções literárias, recuando à inspiração remota do sarcasmo do século XVI, a começar pelas atribulações de Lazarillo de Tormes. Trata-se, isso sim, de perguntar até que ponto o gosto pelas desmontagem das aparências sociais perpassa em alguns filmes portugueses, sem que isso os impeça de vaguear pelas ilusões do romantismo.
Colocada assim, a questão encontra importantes ecos na filmografia de José Fonseca e Costa (1933-2015). Afinal de contas, de Kilas, o Mau da Fita (1980) ao seu título derradeiro, Axilas, ele apostou em construir ficções fundamentadas numa metódica e implacável atenção a tudo aquilo que, nas trocas sociais, envolve formas de domínio de uns seres humanos sobre outros — do espaço familiar às convulsões ideológicas, passando, claro, pelos sobressaltos do sexo.
Curiosamente, semelhante estratégia narrativa foi sendo pontuada por uma vontade de internacionalização da produção portuguesa que se traduziu na regular integração de intérpretes de outros países: por exemplo, a espanhola Victoria Abril em Sem Sombra de Pecado (1983); outra espanhola, Assumpta Serna, em Balada da Praia dos Cães (1987); ou o brasileiro Carlos Vereza em Os Cornos de Cronos (1991). Se essa continua a ser uma via importante para a produção de um pequeno país como Portugal, eis uma questão que permanece em aberto (contaminando, como é óbvio, a obra de outros cineastas). Seja como for, isso não impediu Fonseca e Costa de, através de tais escolhas, assinar alguns dos seus trabalhos mais pessoais, porventura mais confessionais: Os Cornos de Cronos, em particular, retrato de uma solidão visceralmente masculina, é uma obra que vale a pena rever e reavaliar através dos seus inusitados laços com Axilas.

Da política ao humor

Estes são dados que aconselham a superar a visão de Fonseca e Costa como um realizador tocado “apenas” por temas de cariz político. Claro que ele é autor de O Recado (1972), com Maria Cabral, uma crónica dos anos finais do Estado Novo, enredada numa teia de metáforas e ambiguidades arquitectada para contornar as restrições da censura.
Claro também que Balada da Praia dos Cães e Cinco Dias, Cinco Noites (1996), respectivamente inspirados em José Cardoso Pires e Manuel Tiago (pseudónimo de Álvaro Cunhal), são momentos emblemáticos de um cinema português empenhado em lidar com as memórias da ditadura. Isto sem esquecer que, até pelas reacções contrastadas que suscitou, Os Demónios de Alcácer-Quibir (1977) ilustra aquilo que, para o melhor ou para o pior, foi o “cinema político” do pós-25 de Abril.
Resta saber se a dimensão mais radical do criador de Kilas, o Mau da Fita não se encontra num território pleno de humor (“picaresco”, ligado à tradição “burlesca”) em que se contemplam as grandezas e misérias dos seres humanos. Nesta perspectiva, valerá a pena recordar que Fonseca e Costa foi um cineasta seduzido por intérpretes de festiva versatilidade em que a exuberância cómica não exclui, antes favorece, uma intensidade tecida do mais depurado dramatismo — penso, em particular, em Mário Viegas e Lia Gama (ambos presentes no Kilas).
Nesse aspecto, é também revelador que Fonseca e Costa se tenha interessado por uma actriz tão admirável como Ivone Silva, com ela rodando uma exemplar série televisiva intitulada Ivone, a Faz Tudo (1979). Estava em jogo um fundamental elo criativo com os valores mais genuínos do teatro de revista — eis um dos muitos domínios da cultura popular que o império da telenovela se tem encarregado de destruir metodicamente.