Um maravilhoso acontecimento da mais recente produção francesa: em Uma Nova Amiga, François Ozon volta a percorrer o labirinto do masculino/feminino — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 Maio), com o título 'Um policial sobre o masculino e o feminino'.
Há no cinema francês uma tradição romanesca que está longe de se esgotar em qualquer ilusão romântica. Digamos que é a tradição que se pode condensar num clássico como Lola Montès (1955), de Max Ophüls: os artifícios da paixão e as utopias da beleza desembocam, afinal, na nitidez da morte. François Ozon é o herdeiro mais directo, porventura mais legítimo, dessa tradição em que, obviamente, também podemos incluir os nomes de autores tão admiráveis como François Truffaut nos tempos heróicos da Nova Vaga ou, mais recentemente, André Téchiné. E tanto mais quanto o trabalho de Ozon recusa qualquer colagem copista seja a quem for, distinguindo-se antes por uma pesquisa muito pessoal de novas linguagens.
O seu filme mais recente, Uma Nova Amiga, consegue a proeza de transfigurar um belo conto de Ruth Rendell (The New Girlfriend, lançado em 1985) numa aventura afectiva e simbólica através das fronteiras convencionais do masculino e do feminino. Em cena está a relação de Claire (Anaïs Demoustier) e David (Romain Duris), este viúvo de Laura (Isild Le Besco), a grande amiga de Claire. A ausência de Laura vai ser vivida como uma aventura de descoberta em que a verdade dos desejos passa por (e, num certo sentido, exige) uma transfiguração de David num outro ser — entenda-se: numa mulher, de nome Virginia.
Se outras razões não houvesse para celebrar o filme de Ozon, a composição de Romain Duris seria suficiente. Ele consegue interpretar a “passagem” de David a Virginia através de um misto de perplexidade e desejo, medo e fascínio, que intensifica uma verdade essencial do cinema de Ozon. A saber: a identidade sexual como um simulacro que o amor não confirma, antes discute e liberta.
No plano social e político, o trabalho de Ozon não pode ser desligado de toda uma conjuntura de reavaliação de usos e costumes em que a definição clássica do núcleo familiar é posta à prova pela reconversão (sexual, antes do mais) dos seus protagonistas. Em todo o caso, importa não reduzir Ozon a um autor panfletário, muito menos colado a qualquer discurso emanado da esfera específica da política. Sem menosprezar os sinais do nosso presente, Uma Nova Amiga pode ser definido como um melodrama de garboso primitivismo em que, ao interrogarem os seus comportamentos, as personagens centrais são também levadas a avaliar o modo como o irredutível da morte se imiscui nas suas relações. Tudo isto, convém sublinhar, através de uma teia dramática que tem o seu quê de policial.