Jaclyn Jose, Ma' Rosa |
Cannes foi também um festival de actores & actrizes — este texto foi publicado no Diário de Notícias (29 Maio), com o título 'A lição dos filmes de Cannes'.
Jaclyn Jose, uma das mais populares personalidades do cinema e da televisão das Filipinas arrebatou, há uma semana, o prémio de melhor actriz da 69ª edição do Festival de Cannes. A distinção, atribuída por um júri presidido pelo australiano George Miller (Mad Max), resultou do seu trabalho no filme Ma’ Rosa, de Brillante Mendoza, crónica pungente centrada numa mulher que, com o marido, dirige uma loja (“sari sari store”) de um bairro de Manila, lutando pela sobrevivência numa saga pontuada pelo tráfico de drogas, a corrupção da polícia e as mais cruéis formas de exploração do ser humano.
Apesar de tão importante reconhecimento no maior festival de cinema do mundo, Jaclyn Jose não foi tema forte das manchetes dos meios de comunicação das mais diversas paragens. Como o não foi Shahab Hosseini, o iraniano que recebeu o prémio de melhor actor pela sua composição em Le Client, de Asghar Farhadi (também distinguido na categoria de argumento). Dir-se-ia que há matrizes de percepção de determinados acontecimentos culturais e políticos — o Festival é apenas um exemplo sintomático — que triunfam automaticamente, favorecendo a circulação de determinadas imagens e bloqueando o conhecimento de outras.
É pena que assim tenha acontecido. E não em nome dos “melhores” ou “piores” filmes que passaram no festival. Antes porque, em tempos de consagração (também ela automática) das personagens artificiais e repetitivas de muitos “super-heróis”, Cannes celebrou os valores muito humanos da singularidade das identidades e da emoção dos corpos, precisamente através dos seus actores e actrizes.
Assim, pudemos ver composições tão admiráveis como a de Adèle Haenel, interpretando uma jovem médica confrontada com a inesperada violência do seu quotidiano (La Fille Inconnue, de Jean-Pierre e Luc Dardenne), ou Isabelle Huppert, percorrendo o perturbante labirinto afectivo e social de uma mulher vítima de violação (Elle, de Paul Verhoeven). Sem esquecer os subtis trabalhos de Sandra Hüller (Toni Erdmann, de Maren Ade), Sónia Braga (Aquarius, de Kleber Mendonça Filho) e Taraneh Alidoosti (também em Le Client).
São, curiosamente, todos eles, exemplos de actrizes. As suas interpretações contrariam qualquer visão estereotipada ou moralista das personagens femininas, facto que, no contexto específico de Cannes e do seu impacto mediático, contrasta também com a percepção mais esquemática do mais ou menos feérico guarda-roupa na passadeira vermelha do Palácio dos Festivais.
Não se trata, entenda-se, de renegar a dimensão de celebração e espectáculo que um acontecimento deste teor sempre evolve (houve, como sempre, vestidos deslumbrantes na passadeira vermelha). Trata-se, isso sim, de não secundarizar a riqueza temática e o valor simbólico dos filmes que passaram em Cannes — daqui a muitos anos, quando se evocar esta edição do certame, só eles restarão.