![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgfsBjwJsP43lo2A796H4gTjGUYejVS3PUhbXUs6jWv1ZUCtQ0ND6cY7h-gHMMg9s0Fqg8bgoni0QjHau0fu_gt7-V-gzoreLimzYtsj706wlSWkAj4PBzLcXqCuh1fCthwHdBpTw/s400/FILHO+DE+SAUL.jpg) |
O FILHO DE SAUL (2015), de László Nemes |
Com o filme húngaro O Filho de Saul, relança-se a exigência crítica, histórica e simbólica de representar o Holocausto — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 Fevereiro), com o título 'Filme húngaro evoca o inferno de Auschwitz'.
Como representar o Holocausto? A pergunta está longe de ser exclusiva do universo cinematográfico. Mas é um facto que, desde o final da Segunda Guerra Mundial, os mais diversos filmes, de origens e sensibilidades muito diferentes, se têm confrontado com essa interrogação, ao mesmo tempo ética e estética: como utilizar as imagens (e os sons) para preservar a memória do sistema de aniquilamento organizado pelos nazis e dos horrores vividos nos campos de concentração?
O mínimo que se pode dizer de um filme como
O Filho de Saul é que tem sido uma peça fundamental no relançamento de tal interrogação. O seu impacto no Festival de Cannes do ano passado e também o facto de estar na linha da frente para arrebatar o Oscar de melhor filme estrangeiro (tendo já ganho o Globo de Ouro da mesma categoria) transformaram esta longa-metragem de estreia do húngaro László Nemes num dos títulos incontornáveis da temporada 2015/16.
O Filho de Saul coloca-se “a meio caminho” entre duas das mais elaboradas abordagens do universo concentracionário construído pelos nazis. Por um lado, temos a pedagogia de Claude Lanzmann que, através de documentários como
Shoah (1985) ou
O Últimos dos Injustos (2013), tem defendido a necessidade de passar, não pelas imagens (fotografia ou filme) dos campos e dos seus milhões de vítimas, mas sim pelo testemunho dos que, directa ou indirectamente, possuem uma experiência real de tão trágica conjuntura. Por outro lado, deparamos com a contundência narrativa de Steven Spielberg, em
A Lista de Schindler (1993), revisitando as memórias do Holocausto através de uma personagem atípica, Oskar Schindler (1908-1974), industrial alemão, membro do partido nazi, que salvou mais de um milhar de judeus, mantendo-os a trabalhar nas suas instalações fabris.
A rotina da morte
László Nemes desenvolve o seu filme a partir de uma perturbante opção narrativa. Trata-se de encenar o dia a dia no campo de Auschwitz-Birkenau, em 1944, com a terrível rotina dos prisioneiros que chegam em comboios para, num tempo mais ou menos breve, serem mortos e reduzidos a cinzas nos fornos crematórios. Os sinais de tão dantesco quotidiano passam por uma personagem muito concreta: Saul Ausländer (notável composição de Géza Röhrig, actor que é também poeta e professor), membro do Sonderkommando do campo.
O Sonderkommando era constituído por prisioneiros judeus forçados a executar as tarefas de extermínio, desde a organização dos que chegam até ao transporte de cadáveres — os nazis mantinham-nos nessas tarefas durante algum tempo, acabando por inscrevê-los também na lista de pessoas a abater. Assim, tudo aquilo que vemos e ouvimos (os sons são essenciais na apresentação de situações que não chegam a ser visíveis) decorre do olhar de Saul.
Num dispositivo que tem algo de “reportagem”, a câmara segue obsessivamente a figura de Saul (muitas vezes correndo atrás dele, “colada” às suas costas). De tal modo que, muitas vezes, o horror pode ser expresso “apenas” através do som de um cadáver, desfocado num canto da imagem, a ser arrastado pelo chão. Tudo isto adquire uma dimensão ainda mais perturbante quando Saul depara com o cadáver do seu próprio filho — a partir daí, a personagem central vai tentar por todos os meios que ele não seja enviado para os fornos, procurando garantir-lhe a dignidade de uma sepultura.
Imaginar o inferno
O Filho de Saul consegue consumar uma vontade, de uma só vez estética e política, que o filósofo e historiador francês Georges Didi-Huberman, definiu assim: “Para saber é preciso imaginar-se. Devemos tentar imaginar o que foi o inferno de Auschwitz no Verão de 1944. Não invoquemos o inimaginável. Não nos protejamos dizendo que de qualquer forma não o podemos imaginar — o que é verdade —, já que não poderemos imaginá-lo inteiramente. Mas devemos imaginá-lo, esse imaginável tão pesado. Como uma resposta que se oferece, como uma dívida contraída para com as palavras e as imagens que alguns deportados arrancaram, para nós, ao pavoroso real da sua experiência.”
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgkJm1PyuFk-FJMeEOKI43z3FnLR595TTUATAUqvdqe4CwY1pSBg3qN-eMgMnmbx70BJBsPcKpexYF8htwMRdvxrgIENFPPuYxm2P5aZILwSTgcigxVtigC47-zXM4qdZgnRr3i8w/s200/Imagens....jpg)
Estas palavras estão na abertura do livro
Imagens Apesar de Tudo (editora Kkym, Lisboa, 2012), referência tanto mais justificada quanto as imagens a que Huberman se refere — quatro fotografias obtidas por elementos do Sonderkommando, testemunhando o processo de extermínio em Auschwitz — constituem uma inspiração muito directa para uma cena fulcral de
O Filho de Saul. Vemos, assim, o próprio Saul envolvido na ocultação de uma câmara fotográfica no interior do campo e, depois, os angustiados momentos em que um outro prisioneiro consegue fotografar uma fogueira onde estão a ser queimados cadáveres.
Há uma linha simbólica que liga essas fotografias de 1944 a um filme como O Filho de Saul: através do testemunho directo dos prisioneiros ou dos mecanismos da ficção cinematográfica, desenvolve-se o obstinado labor de uma memória que não é legítimo rasurar nem banalizar. Para além das diferenças entre as narrativas (cinematográficas) sobre o Holocausto, importa preservar essa obstinação — estão em jogo a exigência da verdade e o valor do humanismo.