Através de Perdido em Marte, o Planeta Vermelho reforça a sua condição de elemento físico e referência mitológica da ficção científica no cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias (29 Setembro), com o título 'Como cultivar batatas ou a arte de sobreviver em Marte'.
Se quisermos estabelecer uma estatística dos cenários mais frequentes, e também mais apetecíveis, da ficção científica no cinema, não há dúvida que o Planeta Vermelho ocupará um lugar de destaque. O novo exemplo — Perdido em Marte, de Ridley Scott — terá todas as condições para se tornar uma referência emblemática no interior do género, até porque reúne elementos técnicos e artísticos para surgir com algum destaque nas nomeações para os próximos Oscars.
Ridley Scott |
O realizador inglês de títulos como Alien – O Oitavo Passageiro (1979), Blade Runner (1982) ou Prometheus (2012), parecia ser uma escolha natural para contar esta história de um astronauta que fica abandonado em Marte, quando, na sequência de uma violenta tempestade, a sua tripulação assume que terá morrido. Em boa verdade, Scott não foi a primeira hipótese para dirigir o filme. Depois da aquisição dos direitos de adaptação do romance de Andy Weir pela 20th Century Fox, em 2013, Drew Goddard estabeleceu um acordo com o estúdio que previa a escrita de um argumento e a respectiva realização.
Goddard concluiu o argumento mas, entretanto, afastou-se do projecto para preparar o seu segundo trabalho como realizador (estreou-se em 2012, com A Casa na Floresta). A Fox contactou Scott que, de imediato, se mostrou interessado no tema. Além do mais, desde o começo do processo, Matt Damon tinha manifestado a sua disponibilidade para interpretar a figura central, por certo seduzido pela composição de uma personagem que, durante largos períodos, apenas partilha a sua solidão com o espectador.
Como outras grandes produções de anos recentes, Perdido em Marte chega aos mercados como um objecto típico dos padrões de espectáculo de Hollywood, mas é, de facto, uma produção essencialmente europeia. É verdade que são os americanos que dominam o elenco — além de Damon, surgem também Jessica Chastain (como líder da missão em Marte), Jeff Daniels (chefe da NASA), Kristen Wiig, Michael Peña e Kate Mara, face aos ingleses Sean Bean e Chiwetel Ejiofor. O certo é que o essencial da rodagem teve lugar na Hungria (nos Estúdios Korda, nos arredores de Budapeste); mais tarde, a zona de Wadi Rum, na Jordânia, serviu de pano de fundo para a “reconstituição” das paisagens de Marte. Scott pôde também contar com o contributo de dois fiéis colaboradores europeus: o polaco Dariusz Wolski e o italiano Pietro Scalia, responsáveis pela direcção fotográfica e montagem, respectivamente.
Porventura o mais surpreendente em Perdido em Marte é o cuidado equilíbrio entre o drama de uma personagem solitária (como sobreviver quando qualquer missão de resgate demorará pelo menos três anos a chegar a Marte?) e a elegante ironia com que é apresentada a personagem de Damon. É, em qualquer caso, uma ironia alicerçada numa dimensão realista, quanto mais não seja porque o primeiríssimo problema que enfrenta é o da produção de alimentos para sobreviver durante a sua espera. Dito de outro modo: sendo ele, não um astronauta de profissão, mas um biólogo, trata-se de saber como cultivar batatas na terra vermelha de Marte...
A realização de Scott acaba por contrariar os valores correntes (ou a falta deles) do niilismo contemporâneo, desenvolvendo-se como uma saga aventurosa sobre o espírito de resistência e a solidariedade humana. Não possui o fôlego trágico de Gravidade (2013), de Alfonso Cuarón, regendo-se antes pelas regras antigas dos pequenos filmes de “série B” — tendo em conta que se trata de uma produção altamente sofisticada, eis o paradoxo, também ele pleno de ironia.