KARL MARX (1818-1883) |
1. É verdade que, ao longo do século XX, em nome do comunismo, se cometeram crimes horrendos cujos ecos políticos, afectivos e simbólicos não podem nem devem ser rasurados. Em todo o caso, seria mera estupidez moral considerar que o Partido Comunista Português, ou qualquer um dos seus militantes, devam ser considerados como entidades que só podem viver na infinita expiação desses crimes — ainda que, uma vez mais, seja oportuno recordar que o continuado silêncio do PCP, e de todos os seus militantes, sobre tais crimes configura uma atitude politicamente pueril que contraria a saúde democrática de toda a sociedade.
2. É igualmente verdade que existe disperso na sociedade portuguesa um sentimento anti-comunista que tende a confundir-se com as mais sinistras manifestações fascizantes. Por isso mesmo, em nome da democracia, continua a ser importante renovar o voto político formulado por Melo Antunes, em 1975, no emblemático "Documento dos Nove", (re)colocando o PCP no interior da dinâmica democrática — isto não omitindo, claro, que o nosso aqui e agora não se confunde, nem de longe nem de perto, com a conjuntura de 1975.
3. Nada disto impede — bem pelo contrário: justifica e legitima — o reconhecimento dos ziguezagues discursivos do PCP nos últimos meses, no mínimo dando provas de uma hipocrisia que não se adequa à continuada exaltação do "povo", dos "trabalhadores" e da defesa dos seus "interesses". Entre as muitas reveladoras peripécias que podemos observar e coligir, eis três exemplos que, por si só, definem um pequeno conto do absurdo.
OJE, 13 Junho 2015 |
EXPRESSO, 30 Setembro 2015 |
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 24 Outubro 2015 |
4. Há uma dimensão caricatural, de sugestiva banda desenhada, em tais peripécias. Mas será bom não empolá-la. Dito de outro modo: o que aqui encontramos são sintomas de um processo histórico incomparavelmente mais fundo, espalhado por um tempo muitíssimo mais longo e complexo, em alguns casos com lamentáveis manifestações de intolerância do PCP em relação ao Partido Socialista (e, ironicamente ou não, ao seu dirigente António Costa). A questão é esta: o PCP é detentor convicto de um gigantesco passado de sistemática demonização do mesmo PS com o qual, agora, diz ter um acordo "bem encaminhado" — além do mais, não vejo a maioria da nossa classe jornalística, sempre tão empenhada em encostar à parede o mais incauto político que possa ter dado dois espirros com sons diferentes, a fazer o mais pequeno esforço para questionar o PCP sobre tão obscenas contradições.
5. Assombramento que se renova: nada disto pode ser dissociado da possibilidade fulcral de o PS assumir uma atitude de pensamento e criatividade face ao dilema tradicional "direita/esquerda" e, mais especificamente, à sua identidade partidária, ideológica e ética. Perante a continuada demissão do PS face a tal desafio, compreende-se que a chamada de atenção de Cavaco Silva para a insuficiência operacional daquele dilema — e para a gravidade de outro chamado Europa — seja maioritariamente tratada como obra do demónio. Em Portugal, é sempre mais fácil insultar quem se atreva a pensar do que... pensar.