sexta-feira, outubro 16, 2015

O 3D de Zemeckis

A reencenação da proeza de Philippe Petit, caminhando num arame entre as Torres Gémeas do World Trade Center, é pretexto para um assombroso filme de Robert Zemeckis — este texto foi publicado no Diário de Notícias (8 Outubro), com o título 'Um realismo a três dimensões'.

Infelizmente, sabemos que há motivos para “desconfiar” da evolução recente do cinema a três dimensões. E não por questões conceptuais, muito menos críticas. Antes porque, como muitos espectadores rapidamente perceberam, tem havido um grande número de filmes (com super-heróis e afins) de tal modo indigentes na utilização do 3D que, em boa verdade, a sua ostentação parece decorrer apenas de uma lógica oportunista de marketing: ter um novo rótulo promocional e... aumentar o preço dos bilhetes!
O mínimo que se pode dizer de O Desafio [título original: The Walk] é que Robert Zemeckis sabe muito bem o que está a fazer. Ele é, afinal, um dos novos grandes experimentadores do 3D, como o demonstram Beowulf (2007), uma recriação do clássico poema inglês com Angelina Jolie, e Um Conto de Natal (2009), adaptação da história de Charles Dickens, com o extraordinário Jim Carrey a assumir várias personagens.
Dizer que o 3D confere espessura física à travessia no arame empreendida por Philippe Petit é, por certo, verdadeiro. Mas também insuficiente: O Desafio ilustra a possibilidade de o cinema, através das novas tecnologias das três dimensões, reconverter a vida orgânica do espaço e, nessa medida, o olhar do próprio espectador face a qualquer coisa que, mesmo no mais delirante artifício, postula a possibilidade de um novo realismo.
O Desafio acaba por pertencer a um lote de filmes de excepção em que podemos incluir Alice no País das Maravilhas (Tim Burton, 2010), A Invenção de Hugo (Martin Scorsese, 2011) ou Pina (Wim Wenders, 2011). Para lá das suas muitas diferenças, aquilo que os une é essa crença muito antiga segundo a qual o cinema, sendo uma visão do mundo, implica também a invenção de um novo mundo.
E não deixa de ser curioso relembrar que, muito antes de O Desafio, Zemeckis se mostrou um criador empenhado em desafiar os vectores do espaço e também o tempo e respectivas durações — será preciso sublinhar que Quem Tramou Roger Rabbit? (1988), conciliando corpos humanos e figuras animadas, envolvia um importante sentido premonitório? Dir-se-ia que, na candura quase infantil do seu desafio, Phillipe Petit personifica o mais radical gosto cinéfilo: olhar o mundo à nossa volta e proclamar que... tudo é possível!