sexta-feira, outubro 09, 2015

João Bénard da Costa, cinéfilo

LAURA (1944)
O filme de Manuel Mozos, João Bénard da Costa: Outros Amarão as Coisas que Eu Amei, impele-nos a recordar as marcas do desejo cinéfilo do crítico e programador — este texto integrava um dossier sobre o filme, publicado no Diário de Notícias (3 Outubro).

Nos genéricos dos filmes em que foi dirigido por Manoel de Oliveira, a começar por O Passado e o Presente (1972), o actor João Bénard da Costa mudava de nome (para Duarte de Almeida), como se a transfiguração imposta pela câmara implicasse a evidência de uma outra identidade. Era também uma forma irónica de ser e não ser no interior da vertigem do cinema. Daí que, com especial gosto, ele escrevesse como quem deambula por filmes que resistem a encerrar-se num sentido único e unívoco. Se o senso comum gosta de perguntar a um crítico qual é o “significado” de um filme, ele não podia gostar do senso comum — no cinema, o que mais conta não é a unicidade dos significados, mas a pluralidade das significações, quer dizer, essa evidência que nos diz que o real que vemos é também aquele que já começámos a perder.
Lembro-me, por exemplo, do seu fascínio por Laura (1944), de Otto Preminger. E embora correndo o risco de atraiçoar a sua memória, direi que ele via no filme a perfeita ilustração da utopia romântica — no limite, perante a notícia da morte de Laura, Dana Andrews era mais feliz perante a pintura de Gene Tierney do que quando ela, saída não se sabe de onde, lhe aparecia em carne e osso...
São divagações imprecisas, eu sei. Mas decorrem de um valor fundamental — o gosto pela multiplicação das leituras dos filmes — que está para além da subjectividade radical que estas coisas atraem. Dito de outro modo: no caso de João Bénard da Costa, a celebração das diferenças dos filmes exprimia-se também através de conceitos dinâmicos de programação, muito para além de qualquer academismo arquivista e museológico. Querer ver é também uma arte de dar a ver.
Na Fundação Gulbenkian e na Cinemateca, a sua actividade de divulgador ilustra uma dialéctica, herdada do trabalho desenvolvido por Henri Langlois (1914-1977) à frente da Cinemateca Francesa, em que a acumulação das memórias não pode ser dissociada de toda uma política de amostragem em que cada filme pode ser o mesmo e o seu contrário. Entenda-se: cada filme que regressa, sendo inevitavelmente igual, é também radicalmente outro porque se vem mostrar, inscrever e redescobrir num novo presente.
Nos dias que correm, de triunfo do mais pobre imaginário futebolístico (“qual é para si o significado do golo que marcou?...”), nada disto é muito respeitado — nem, em boa verdade, muito comum. Com João Bénard da Costa, podemos aprender a ver os filmes como uma arte de nos perdermos, para nos reencontrarmos em algum lugar ainda sem nome. Sem esquecer que, no seu jogo concreto de coisas abstractas, os filmes são apenas a própria vida.