A estreia de Homem Irracional relança-nos no labirinto do masculino/feminino, fulcral na dinâmica dramática de todo a obra de Woody Allen — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 Setembro), com o título 'Woody Allen filma as razões que a razão desconhece'.
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Num dos seus filmes menos conhecidos, Setembro (1987), Woody Allen coloca na boca de uma personagem uma observação que talvez pudesse funcionar como símbolo da sua ironia, mas também do seu profundo cepticismo: “O universo é aleatório, moralmente neutro e inimaginavelmente violento”. Tal frase não ficaria mal como apresentação do seu novo filme, Homem Irracional, revelado em Maio, na selecção oficial do Festival de Cannes (extra-competição).
É muito provável que, ao contrário do que aconteceu sobretudo nas décadas de 70/80, Woody Allen já não controle com o mesmo rigor as formas de promoção do seu trabalho. Quando do lançamento do seu filme anterior, Magia ao Luar (2014), proliferaram na Net considerações pouco simpáticas sobre a vulgaridade do grafismo dos respectivos cartazes. Agora, há qualquer coisa de desconcertante no facto de Homem Irracional, em particular através do seu trailer, ter sido internacionalmente promovido como uma comédia mais ou menos brejeira sobre a relação de um professor de filosofia, Abe Lucas (Joaquin Phoenix), com a sua aluna predilecta, Jill Pollard (Emma Stone), em ambiente tipicamente universitário.
Não se poderá dizer que Homem Irracional seja estranho ao peculiar sentido de humor cuja fama original está ligada a comédias como Que Há de Novo, Gatinha? (1965), com Woody Allen como argumentista e actor, ou O Inimigo Público (1969), Bananas (1971) e O ABC do Amor (1972), já acumulando as funções de realizador. Seja como for, a história de Abe e Jill vai-se transformando numa saga moral de componentes francamente perturbantes.
Há que ter alguma prudência nas referências às peripécias que envolvem Abe e Lucas (quanto mais não seja porque o espectador pode, e deve, descobri-las em primeira mão). Simplificando, digamos que, procurando seduzir Jill, ou apenas para contrariar o seu tédio existencial, Abe vai mantendo com ela um diálogo sobre os prós e contras da procura da justeza moral nas relações humanas. No limite, Abe formula a hipótese de agir contra uma personagem cuja malvadez é conhecida, não através das artes da persuasão ou da denúncia pública, mas consumando um acto condenado pela lei...
Que está, então, em jogo? Algo que, em boa verdade, marca muitos momentos emblemáticos da filmografia de Woody Allen, a começar por esse título revelador que é Crimes e Escapadelas (1989): trata-se de saber até que ponto a natureza humana, na sua procura de justiça e harmonia, pode atrever-se por caminhos rejeitados tanto pelos valores colectivos como pela ética individual.
Numa máxima dos seus Pensamentos, o filósofo francês Blaise Pascal (1623-1662) escreveu que “o coração tem razões que a razão desconhece”. Woody Allen poderá, talvez, aceitar tal ideia como fulcral na experiência tão extrema que Abe faz viver a Jill (ou ela a ele) — como se as ilusões românticas coexistem, silenciosamente, com a possibilidade do crime.
Se é um facto que, desde Match Point (2005), Woody Allen tem filmado sobretudo em cenários da nossa Europa, não é menos verdade que há na sua obra uma visceral dimensão americana e, escusado será sublinhá-lo, nova-iorquina — afinal de contas, algumas imagens de um filme como Manhattan (1979) tornaram-se símbolos da própria “Big Apple”. Depois de Magia ao Luar, rodado na Côte d’Azur e Alpes Marítimos, Homem Irracional representa também um regresso aos EUA, mais concretamente a uma pequena cidade universitária do estado de Rhode Island.
De novo contando com a colaboração do director de fotografia franco-iraniano Darius Khondji, Woody Allen contempla a beleza dos jardins e das casas como um sinal ambíguo, dir-se-ia perverso, dos fantasmas que se vão instalando na relação de Abe e Jill. A certa altura, nas argumentações com que procura legitimar o seu comportamento, Abe evoca mesmo (completamente fora de contexto) a célebre frase de Jean-Paul Sartre: “O inferno são os outros”. O certo é que há um inferno privado que vive dentro dele e Homem Irracional é um filme sobre esse assombramento.