Com a estreia de O Pátio das Cantigas, chega-se ao grau zero do tele-cinema: há, de facto, em Portugal, um cinema totalmente parasitado pela telenovela — este texto foi publicado no Diário de Notícias (9 Agosto), com o título 'A cultura triunfante de Leonel Vieira'.
Está consumado. O quê? O domínio prático e simbólico da telenovela no audiovisual português. Foram 38 anos de crescente agonia conceptual, desde a estreia televisiva de Gabriela, a 16 de Maio de 1977, até ao lançamento do filme O Pátio das Cantigas, neste Verão de 2015.
Que se passou? O triunfo de uma cultura de formatação das imagens (e dos sons) que encontra, agora, a sua apoteose no filme produzido e dirigido por Leonel Vieira. São três as leis estipuladas por tal cultura, uma narrativa, outra interpretativa, outra figurativa.
Em primeiro lugar, reduz-se qualquer visão do mundo a uma colecção de figuras e cenas superficiais, “obrigatoriamente” anedóticas, desligadas de qualquer contexto pertinente, seja ele cómico ou dramático, realista ou fantástico.
Depois, instala-se um imenso menosprezo estético pelo trabalho específico dos actores, reduzidos a títeres de gestos e efeitos caricaturais, alheios a qualquer lógica de composição (há mesmo uma ou duas gerações de profissionais que foram educados pela indústria da telenovela na ilusão pueril de que representar é produzir uma imagem “pitoresca” para a câmara).
Enfim, pratica-se uma indiferença militante em relação ao facto de o cinema ser uma arte do espaço e do tempo. Duas “soluções” são regularmente praticadas: a colagem inconsequente de pontos de vista concebidos à maneira de um noticiário de estúdio, com as câmaras todas arrumadas “do mesmo lado”, ou a exploração de mecanismos de “aceleração”, típicos das retóricas mais simplistas da montagem televisiva.
Não há em O Pátio das Cantigas um único instante que se inscreva na nossa memória como um acontecimento específico de cinema. Onde está um enquadramento que reflicta algum interesse pela dinâmica do espaço, uma duração que atente nas singularidades de um ou outro actor, uma ligação de dois planos que seja mais do que a patética ilusão de que, se mudarmos muitas vezes de ponto de vista, então a “velocidade” passa a ser um dispositivo narrativo?
A possibilidade de alguma comparação com o filme homónimo de 1942, produzido por António Lopes Ribeiro, não passa de um equívoco. Porque, para além de envolver os lugares-comuns de uma grosseira ideologia da “nostalgia” mais paternalista, não é possível comparar o que, para todos os efeitos, era um objecto de cinema com um exercício regido apenas pela indiferença descartável das mais vulgares formas televisivas.
Prossegue, assim, a mais velha guerra cultural do cinema português. Porquê? Porque a cultura não é a celebração de valores “transcendentes”, mas sim o confronto de valores diversos, desde os filmes ao futebol, por vezes tragicamente inconciliáveis. É uma guerra que aqueles que pensam (e filmam) como Leonel Vieira estão a ganhar em todas as frentes, substituindo a vibração específica do cinema pela monótona formatação da mais medíocre televisão. Está consumado. E o que mais custa é ver os actores, os bons, os maus e os assim-assim, à deriva neste mercado de trabalho.