domingo, agosto 16, 2015

E depois... da nona

Philip Glass ultrapassou a “maldição” das nove sinfonias. Pena que a “décima”, que agora surge em disco, seja das menos interessantes da sua obra orquestral.

Beethoven, Schubert, Bruckner, Mahler, Vaughan Williams… Todos eles são compositores cuja obra sinfónica não passou da respetiva “nona” (mesmo tendo alguns deles deixado esboços do que poderia ter sido, depois, a “décima”. É claro que não é regra. E entre os grandes sinfonistas do século XX tanto houve um Sibelius que assinou apenas sete sinfonias, um Henze que fez uma décima ou um Shostakovich que nos deixou quinze. Há uns anos, em conversa com Philip Glass, falámos sobre o que pensava ele dessa barreira das nove sinfonias e de como a poderia – se é que o desejava – ultrapassar. No seu reconhecido bom humor, respondeu que comporia a nona e a décima ao mesmo tempo. E estando uma terminada, a outra estaria igualmente pronta. E assim a “maldição” (o que gerou risos) seria vencida. Tal como a “nona” (uma das suas mais interessantes obras orquestrais recentes), a Sinfonia N.º 10 foi composta por Philip Glass em 2011, com algum trabalho adicional em 2012. Contudo, a sua génese foi bem distinta do que aconteceu no resto de toda a sua obra sinfónica. E na verdade parte até de um trabalho de composição que precede a Sinfonia N.º 9

A música que serve de ponto de partida à Sinfonia N.º 10 corresponde a um conjunto de peças criadas para o Philip Glass Ensemble, pensadas para apresentar na reta final da Expo de Saragoça, em setembro de 2008. Com o título Los Paisages del Rio, era uma obra para teclas, sopros e voz destinada a acompanhar o espetáculo de fogo de artifício que assinalou o encerramento da exposição. E assim foi, nas margens do Ebro, perante 200 mil pessoas. Contudo, achando-a votada a não ter nova vida senão naquele momento, Philip Glass pensou em fixar todo este corpo musical numa sinfonia, exigindo o processo um trabalho de arranjo para a dimensão e variedade de instrumentos de uma orquestra. Ao assumir a direção da Orchestre Française des Jeunes, o maestro Dennis Russel Davies – habitual colaborador do compositor e o grande responsável por tê-lo levado a compor sinfonias – encontrou a orquestra e o lugar para que a Sinfonia N.º 10 ganhasse forma.

A ideia de compor uma sinfonia a partir de matéria prima já existente não era nova para Glass. Basta recordar como as suas sinfonias números 1 e 4 decorrem, respetivamente, da assimilação dos álbuns Low e Heroes, de David Bowie. E com a ópera La Belle et la Bête – uma das que integram uma trilogia que nos anos 90 criou com Cocteau como fonte de inspiração – tinha já mostrado como era viável pensar uma nova dimensão orquestral para material inicialmente pensado para o ensemble.

Esse não é o problema maior que faz contudo da Sinfonia N.º 10 uma das menos estimulantes da obra de Philip Glass. Nem o exultante tom festivo, naturalmente esperado numa música que nasceu para dar vida a uma noite de encerramento de uma grande exposição, é o seu calcanhar de Aquiles. Num momento em que, por uma série de recentes trabalhos de música instrumental, como as partitas interpretadas por Tim Fain já gravadas em disco, e em obras orquestrais recentes como o Concerto para Violino N.º 2 (de 2009), que há poucas semanas conheceu nova e brilhante interpretação em disco por Gidon Kremer – na Deutsche Grammophon – a obra de Glass dá sinais de busca por outras demandas e um novo sentido de lirismo, a Sinfonia N.º 10 é um passo atrás. E parece pouco mais do que uma sucessão de soluções de composição e arranjo para orquestra fechadas em revisitações de modelos já antes experimentados.

Se por um lado a matéria prima original apresentada em Saragoça garantia marcas de identidade com o lugar e a ocasião, o seu upgrade para o desafio sinfónico poucas vezes escapa a uma sensação de inconsequente repetição. E note-se que, falando de Philip Glass, a ideia de repetição não é um argumento “contra”. Pelo contrário. Mas aqui acontece sem aparente busca de um destino ou sentido. Parece uma gestão em continuidade… E não é isso que se espera de um dos maiores compositores do nosso tempo. Que, mesmo não se reconhecendo como um sinfonista, tem na sua obra orquestral alguns momentos de excelência e visão. Nada como voltar a escutar as duas sinfonias baseadas em álbuns de Bowie, a colossal e ecuménica Sinfonia N.º 5, assim como os sinais de demanda materializados nas números 7 e 8, além dos que definiram mesmo novos horizontes na já aqui recordada número 9. Ficamos à espera de melhores ares por uma eventual número 11 que, mais anos menos ano, deverá surgir (Glass já afirmou que não chegaria às 15 de Shostakovich, mas uma décima primeira ainda está dentro do intervalo de possibilidades).

Não há contudo aqui razões para pessimismos. De resto, mesmo sem traduzir ecos dos espaços onde tem lançado os caminhos de algumas das suas mais interessantes composições recentes, a Concert Overture que conclui o alinhamento do disco dá-nos o melhor instante desta nova edição da Orange Mountain Music. Composta para assinalar os 200 anos da guerra anglo-americana de 1812, e estreada em concertos em Baltimore e Toronto nos quais foi também apresentada a célebre Abertura 1812 de Tchaikovsky – criada para evocar outro facto do mesmo ano, nesse caso a resistência russa ao avanço das tropas de Napoleão – é uma pequena peça igualmente celebratória, igualmente focada em modelos que recordam outras etapas na obra de Glass, mas decididamente mais entusiasmante e cativante que a sinfonia que pouco faz pela música criada para aquela noite em Saragoça e que, no contexto original, deve ter sido bem mais saborosa de escutar.