"Wildheart"
RCA / Sony Music
4 / 5
O processo de descoberta, aprofundar e demarcar de uma voz criativa tem na sucessão de discos que colocaram o norte-americano Miguel na linha da frente das (merecidas) atenções do nosso tempo uma belo e claro relato de como de uma série de encantamentos e referências que se tomam como ponto de partida se pode rumar a um destino que se alcança com resultados maiores e distintos e no qual, se por um lado se assinala a afirmação de uma nova personalidade num novo tempo, por outro se lembra como nada se faz sob a bênção da geração espontânea. E a história assim dá um pulo e avança. Depois de um primeiro álbum em 2010 que se destacava do universo R&B ao seu redor e de um brilhante Kaleidoscope Dreams que, em 2012, arrebatava entusiasmos e conhecia aclamação em diversas frentes da opinião, eis que acrescenta agora no magnífico Wildheart a peça em falta para não só confirmar a solidez de um projeto de carreira já com fundações bem firmes mas também aprofundar a visão de facto caleidoscópica que procura para uma música que, se por um lado não deixa nunca de ser herdeira de escolas e vivências R&B e algumas das suas descendências e periferias, a elas sabe somar ideias, cores e acontecimentos…
Se no álbum de 2012 os sinais de (bom) alerta não se limitavam à excelência da composição, produção, instrumentação e voz, mas sublinhavam numa breve incursão pela memória deTime of The Season dos Zombies que aqui havia uma alma atenta ao mais vasto universo de referências na história recente da música popular, agora assinala a integração mais profunda da mesma forma de escutar e assimilar ideias, mesmo que aparentemente distantes do universo ao seu redor enriquecendo assim um ainda mais saboroso e estimulante infinito particular.
Lembro-me necessariamente de sensações semelhantes – que não são para ler como comparação de sonoridades mas antes de um saber olhar para outros planos, nomeadamente os da cultura pop/rock – naquele tempo em que Prince era um dos mais inspirados músicos do mundo. Há de resto em Wildheart uma mesma capacidade em trazer a um mesmo lugar todo um conjunto de experiências que se transformam em canções com uma identidade conjunta que suplanta a soma das partes que a alimentaram, como em tempo escutámos no muitas vezes injustamente esquecido Around The World In a Day (1985), o álbum caleidoscópico de Prince no qual antecipou, via Minneapolis, uma vaga de sede de redescobertas por heranças do psicadelismo que o mundo só seguiria em massa uns quatro anos depois. Será também Miguel um líder de uma nova mensagem? Não me parece que seja essa a sua demanda…
Tal como Prince, embora sob uma aura pessoal diferente e vivendo num tempo em que o fosso que separa os fazedores de êxitos de estrondo global dos que, mesmo sob sucesso, operam sob as suas regras e não os sabores do mês, Miguel talvez seja mais um caso aparte que um batedor. E ao escutar Wildheart fica clara a profunda ligação pessoal que talha não só esta abertura a várias frentes musicais – onde as batidas (que não são protagonistas) convivem com guitarras, teclados, o gosto cenográfico e mesmo pontual incursão pelo hip hop – como é evidente a forma como aqui expressa um relacionamento com um lugar. E esse lugar é Los Angeles, que se materializa na forma como respira vivências da cidade e pelas palavras e música expressa uma diversidade que ali se manifesta de uma forma peculiar, até mesmo nos modos de traduzir a carga sensual e sexual que passa por canções sublimes como FLESH ou The Valley (esta citando claramente a indústria porno local).
É certo que não há aqui um Adorn, aquele raro single que abria o alinhamento de Kaleidoscope Dream como um irresistível cartão de visita ao qual era difícil resistir. Mas mesmo sem singles tão evidentes – embora não faltem aqui outras boas propostas – Wildheart apresenta um trabalho musicalmente coeso e consistente, num alinhamento que lembra como, mesmo com oráculos a clamar pelo desaparecimento do conceito do “álbum”, a ideia de uma coleção de canções que se relacionam entre si está longe de ter abandonado os músicos e quem os escuta. De resto, depois de ter já ouvido tanta gente a dizer que o vinil tinha desaparecido ou que a ópera era coisa do passado, aprendi que mais vale estar atento ao desenrolar dos acontecimentos que lançar frases bombásticas que colocam ponto final a frases ainda longe de concluídas.