Numa cena de O Desprezo (1963), de Jean-Luc Godard, Michel Piccoli diz que gosta muito do CinemaScope, ao que Fritz Lang lhe responde: "Oh, não foi concebido para seres humanos. Só para cobras — e funerais". Face ao realismo mágico de As Mil e uma Noites, apetece discutir a asserção do mestre de Metropolis, acrescentando: baleias. Numa primeira aproximação [vol. 1 + vol. 2], talvez possamos dizer que o filme de Miguel Gomes existe a partir dessa contradição viva, misto de matéria e abstracção: por um lado, trata-se de fazer o retrato largo (em scope, justamente) das infinitas tristezas deste reino de Portugal; por outro lado, há nele um realismo do tempo que não exclui, antes sabe atrair, os elaborados artifícios de uma narrativa seduzida por todas as transfigurações. Daí a proeza invulgar, cativante e comovente: dizemos que "isto é Portugal", ao mesmo tempo que reconhecemos estar a vogar "dentro de um filme" — somos convocados para discutir a própria condição de espectador. Mais do que nunca, isso envolve uma beleza que a cultura televisiva dominante nos tem andado a roubar, cobrando um imposto a que deu o nome de "naturalismo", afastando-nos do prazer e da angústia de olhar à nossa volta.