segunda-feira, julho 27, 2015

Como fazer a história do nazismo?

Fazer história não é apenas acumular materiais de arquivo: um bom/mau exemplo dessa ilusão pode ser a série Os Últimos Dias dos Nazis — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 Julho), com o título 'Como fazer história?'.

O espaço televisivo alimenta-se de muitos lugares-comuns que funcionam como mecanismos de auto-legitimação. A abordagem da história, por exemplo: qualquer amontoado de imagens de arquivo, sustentado por uma voz “descritiva”, tende a ser consagrado como uma inquestionável investigação “histórica”.
O exemplo da série Os Últimos Dias dos Nazis, a passar no canal História, pode ser esclarecedor [aparentemente, a página oficial da série foi desactivada]. De que se trata? De recordar os tempos finais da Segunda Guerra Mundial a partir de depoimentos de figuras que, com mais ou menos evidência, desempenharam alguma função na máquina de morte do nazismo. No site do canal, e de acordo com a lógica especulativa da televisão mais simplista, escreve-se mesmo que a série “transporta o tele-espectador ao interior da mente dos alemães”.
Nada a ver, entenda-se, com as matrizes de ficção que revisitam a guerra e, em particular, o Holocausto, questionando os próprios enunciados nazis (leia-se o recente e prodigioso romance A Zona de Interesse, de Martin Amis). Aliás, a série limita-se a aplicar o cliché dos chamados “docudramas”, combinando filmes de época com situações encenadas, protagonizadas por actores.
Também não se trata de recusar a hipótese de a abordagem histórica contrapor “reconstituições” a imagens de arquivo — toda a obra de um cineasta tão admirável como Errol Morris baseia-se nesse método (veja-se, por exemplo, The Thin Blue Line, de 1988). O que está em causa é a colagem ligeira, puramente especulativa, de imagens totalmente descontextualizadas com momentos encenados de acordo com a dramaturgia do mais rasteiro sensacionalismo.
Na prática, Os Últimos Dias dos Nazis filia-se na mesma estética de “aceleração” visual e produção de “agitação” temática que encontramos, por exemplo, nos programas sobre “famosos” que nos garantem ter encontrado o segredo da felicidade eterna... Podia ser apenas uma anedota infeliz. Infelizmente, é uma prova de irresponsabilidade face à história e à complexidade das suas heranças.