MARY ELLEN MARK Dennis Hopper, rodagem de Apocalypse Now 1979 |
A herança das fotografias de Mary Ellen Park combina a capacidade metafórica com a linearidade de um testemunho documental — este texto foi publicado no Diário de Notícias (31 Maio), com o título 'O realismo plural de Mary Ellen Mark'.
Repare-se nesta fotografia do actor Dennis Hopper. Por um lado, a sua pose, transformando uma degradada bandeira dos EUA numa janela para o cansaço triste do olhar, possui os elementos necessários e suficientes de uma imagem capaz de transcender qualquer aparência imediata, porventura adquirindo inusitada energia informativa ou simbólica — como num filme. Por outro lado, mesmo que lhe reconheçamos um poder de significação que está para além da fragilidade corrente do quotidiano, a imagem possui a simplicidade tocante de algo que, conservando o carácter irredutível de um acontecimento, está ali mesmo, desarmada e desarmante, à frente do olhar — como numa reportagem.
É uma imagem da autoria de Mary Ellen Mark, nome grande da história da fotografia americana, falecida no dia 25 de Maio, contava 75 anos. A sua herança plural envolve esse fascinante contraste, inerente a um realismo visceral: através das suas fotografias, deparamos com as cenas menos óbvias de universos que julgamos conhecer, ao mesmo tempo que percebemos que tais registos nos remetem para temas e considerações muito para além do carácter efémero de um “instantâneo”.
M. E. M. |
As suas fotografias das prostitutas de Bombaim, publicadas no livro Falkland Road (1981), ou das personagens errantes das ruas de Seattle, eternizadas em Streetwise (1982), continuam a tocar-nos muito para além de qualquer facilidade pitoresca. Atenta às singularidades do instante, Mary Ellen Mark era também uma observadora que nunca esquecia que o momento fixado pela câmara não passava de uma configuração precária do destino de cada indivíduo fotografado. A sua atenção às histórias de cada um reflectir-se-á, por certo, no livro póstumo Tiny: Streetwise Revisited, a ser publicado ainda em 2015, nascido, justamente, de um regresso aos cenários de Streetwise.
Estamos perante um legado precioso, uma verdadeira lição do olhar. Em tempos de tantas e tão demagógicas caracterizações dos destinos individuais, em particular através do imaginário risível dos “famosos”, Mary Ellen Mark ensina-nos a descobrir o carácter irredutível de cada ser humano. Descobrir e respeitar, convém acrescentar, já que tal irredutibilidade envolve tanto uma estrela de cinema como a mais anónima das personagens.