terça-feira, junho 02, 2015

As imagens de Mary Ellen Mark

MARY ELLEN MARK
Dennis Hopper, rodagem de Apocalypse Now
1979
A herança das fotografias de Mary Ellen Park combina a capacidade metafórica com a linearidade de um testemunho documental — este texto foi publicado no Diário de Notícias (31 Maio), com o título 'O realismo plural de Mary Ellen Mark'.

Repare-se nesta fotografia do actor Dennis Hopper. Por um lado, a sua pose, transformando uma degradada bandeira dos EUA numa janela para o cansaço triste do olhar, possui os elementos necessários e suficientes de uma imagem capaz de transcender qualquer aparência imediata, porventura adquirindo inusitada energia informativa ou simbólica — como num filme. Por outro lado, mesmo que lhe reconheçamos um poder de significação que está para além da fragilidade corrente do quotidiano, a imagem possui a simplicidade tocante de algo que, conservando o carácter irredutível de um acontecimento, está ali mesmo, desarmada e desarmante, à frente do olhar — como numa reportagem.
É uma imagem da autoria de Mary Ellen Mark, nome grande da história da fotografia americana, falecida no dia 25 de Maio, contava 75 anos. A sua herança plural envolve esse fascinante contraste, inerente a um realismo visceral: através das suas fotografias, deparamos com as cenas menos óbvias de universos que julgamos conhecer, ao mesmo tempo que percebemos que tais registos nos remetem para temas e considerações muito para além do carácter efémero de um “instantâneo”.
M. E. M.
Não admira que o seu trabalho — repartido por mais de meio século e registado em 16 livros — possua a qualidade rara de um sereno humanismo. A fotografia de Dennis Hopper pode servir de testemunho, até porque corresponde a um universo cinematográfico — a rodagem de Apocalypse Now (1979), de Francis Ford Coppola, nas Filipinas — que foi pontuando a evolução de Mary Ellen Mark. Algumas das imagens decisivas para a sua projecção internacional foram obtidas nas filmagens de Satyricon (1969), de Federico Fellini, tendo ainda acompanhado, por exemplo, a fabricação de títulos como Artigo 22 (1970) e Iniciação Carnal (1971), ambos de Mike Nichols, e Austrália (2008), de Baz Luhrmann.
As suas fotografias das prostitutas de Bombaim, publicadas no livro Falkland Road (1981), ou das personagens errantes das ruas de Seattle, eternizadas em Streetwise (1982), continuam a tocar-nos muito para além de qualquer facilidade pitoresca. Atenta às singularidades do instante, Mary Ellen Mark era também uma observadora que nunca esquecia que o momento fixado pela câmara não passava de uma configuração precária do destino de cada indivíduo fotografado. A sua atenção às histórias de cada um reflectir-se-á, por certo, no livro póstumo Tiny: Streetwise Revisited, a ser publicado ainda em 2015, nascido, justamente, de um regresso aos cenários de Streetwise.
Estamos perante um legado precioso, uma verdadeira lição do olhar. Em tempos de tantas e tão demagógicas caracterizações dos destinos individuais, em particular através do imaginário risível dos “famosos”, Mary Ellen Mark ensina-nos a descobrir o carácter irredutível de cada ser humano. Descobrir e respeitar, convém acrescentar, já que tal irredutibilidade envolve tanto uma estrela de cinema como a mais anónima das personagens.