Com o novo Inside Out, a Pixar desafia as matrizes tradicionais das histórias de ambiente familiar — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Junho), com o título 'Novos usos e costumes'.
A classificação da Pixar como o “paraíso” das imagens digitais deve ser avaliada para além da visão pitoresca com que tantas vezes são problematizadas as transformações tecnológicas. Não se trata, entenda-se, de diminuir o papel determinante que o estúdio tem desempenhado num fenómeno realmente transversal — a reconversão digital global —, capaz de transfigurar o cinema desde as condições de produção até às formas de difusão. Trata-se, isso sim, de lembrar que, através das suas histórias, a Pixar tem sido também uma fábrica narrativa apostada em discutir as regras clássicas de representação dos humanos e respectivas relações. O emblemático Toy Story (1995) não era uma aventura vivida num espaço “invisível” para os olhares humanos?
O caso de Divertida-Mente [Inside Out] tem um valor ainda mais sintomático, de ressonâncias simbólicas porventura muito mais complexas do que podemos pressentir numa primeira aproximação. O filme abandona a matriz tradicional de encenação das crianças através da família (de acordo com a herança dos estúdios Disney), dando-nos a ver a pequena Riley como um computador gerido por cinco programas básicos (as cinco emoções que habitam o seu cérebro: Alegria, Tristeza, Medo, Repulsa e Raiva). Passamos, assim, da ambiência familiar para personagens cujo comportamento passou a definir-se por elementos virtuais. O essencial de Divertida-Mente acontece mesmo no interior da cabeça de Riley, encenada como uma verdadeira central informática.
Que está em jogo, então? Algo que acaba por escapar ao não muito feliz título português. Tudo acontece nas relações “dentro & fora” (Inside Out), de acordo com uma lógica capaz de desafiar todos os padrões clássicos de caracterização psicológica. Ou ainda: a revolução de usos e costumes começa nas nossas crianças.