O júri de Cannes, pouco antes da cerimónia de encerramento |
Foi um festival pleno de obras das mais diversas origens, diferentes e estimulantes: a 68ª edição de Cannes terminou com a vitória de Dheepan, de Jacques Audiard — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 Maio), com o título 'Drama global dos refugiados ecoa na Palma de Ouro de Cannes'.
Se os prémios de um festival de cinema servem também para reflectir os pontos de vista dominantes dos seus espectadores, importa dizer que o júri da 68ª edição de Cannes, presidido pelos irmãos Joel e Ethan Coen, conseguiu uma boa síntese: a Palma de Ouro para Dheepan, do francês Jacques Audiard, distinguiu um filme cuja actualidade política e simbólica foi amplamente reconhecida. Apontado por alguns como vencedor “obrigatório”, o mestre de Taiwan, Hou Hsiao-Hsien, recebeu o prémio de realização por The Assassin, evocação operática dos conflitos de poder na China do séc. IX.
Jacques Audiard |
A consagração de Son of Saul, do húngaro László Nemes, com o Grande Prémio (o segundo na hierarquia do palmarés), decorre do mesmo tipo de preocupações. Muito para além das regras tradicionais do filme sobre a Segunda Guerra Mundial, Son of Saul arrisca colocar a sua acção no interior do campo de concentração de Auschwitz, propondo uma visão de perturbante realismo que, por certo, vai dar origem a um renovado debate sobre as formas cinematográficas de abordagem do Holocausto. László Nemes (n. 1977) fica também como uma das genuínas revelações deste festival, uma vez que Son of Saul é a sua primeira longa-metragem. Ao agradecer, fez questão em lembrar que o filme foi rodado (e projectado) em película de 35 mm, formulando um voto da sua geração face à generalização dos formatos digitais: “Não queremos que a película desapareça”.
Apresentada pelo actor francês Lambert Wilson (que também já desempenhara idêntica função na abertura), a cerimónia dos prémios de Cannes, transmitida em França pelo Canal +, voltou a ser uma mistura algo incoerente, de excessiva duração. Por um lado, parece ter havido a preocupação de diversificar o evento (à maneira dos Oscars?...), propondo alguns intermezzos musicais, incluindo uma interpretação de um clássico da canção popular, Just a Gigolo, pelo actor americano John C. Reilly (que surgia em dois títulos da competição: Tale of Tales e The Lobster, respectivamente de Matteo Garrone e Yorgos Lanthimos). Por outro lado, desde as divagações da abertura até alguns prolongadíssimos discursos, a cerimónia ressentiu-se de um tom demasiado palavroso — Emmanuelle Bercot, vencedora do prémio de interpretação feminina no filme Mon Roi (ex-aequo com Rooney Mara, em Carol), terá sido o caso mais extremo, oscilando o seu discurso entre o panfleto profissional e a celebração confessional.
Agnès Varda |
A consagração do cinema francês passou também pelo momento mais tocante da cerimónia, com a atribuição de uma Palma de Ouro honorária a Agnès Varda. Na sua apresentação, Jane Birkin lembrou que ela foi a única mulher no meio dos realizadores da Nova Vaga francesa, de Jean-Luc Godard a François Truffaut, passando por Jacques Demy (marido de Varda). A realizadora comoveu-se ao referir que, na casa da família, esta palma irá ser colocada ao lado de uma outra, ganha por Demy, em 1964, com Os Chapéus de Chuva de Cherburgo.
Ponto a reter: apesar de contar com três pesos pesados na competição — Nanni Moretti (Mia Madre), Matteo Garrone (Tale of Tales) e Paolo Sorrentino (Youth) —, o cinema italiano ficou fora do palmarés. Moretti, precisamente, foi o último italiano a ganhar uma Palma de Ouro, em 2001, com O Quarto do Filho. Se há alguma cinematografia claramente perdedora nesta edição de Cannes é, sem dúvida, a italiana.