Eis uma boa revelação da cinematografia austríaca, intimista e "psicológica", a que não é estranha a herança de Ingmar Bergman: este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 de Abril).
Será que existe, não apenas uma memória viva, mas também uma herança activa da obra fascinante de Ingmar Bergman (1918-2007)? Vendo um filme como Outubro Novembro, do austríaco Götz Spielmann, apetece responder que sim.
Não se trata de fazer qualquer aproximação valorativa que esqueça a imensidão irrepetível da obra do mestre sueco. Acontece que Spielmann, também responsável pelo argumento, parece tocado por uma obsessão dramática e filosófica, visceralmente bergmaniana. A saber: as relações humanas tendem a desenvolver-se para além da bondade programada pelas instituições (a começar, claro, pela instituição familiar), expondo uma incompatibilidade dos seres que, por vezes, se cruza com as mais radicais manifestações de amor.
Outubro Novembro envolve o confronto de duas irmãs que se reencontram devido ao precário estado de saúde do pai: uma delas (Ursula Strauss) vive numa região rural com o marido, o filho e o próprio pai; a outra (Nora von Waldstätten) é uma actriz que chega de visita. O mais fácil seria transformar o seu frente a frente numa oposição moralista entre a “cidade” e o “campo”, solução que Spielmann sempre evita, mesmo quando os seus efeitos preconceituosos podem condicionar as relações entre as personagens.
Estamos, afinal, perante um processo de mútua descoberta, em que não poucas vezes cada uma das irmãs resiste a reconhecer aquilo que a outra nela evoca ou desencadeia. E mesmo se o termo não está muito na moda, importa dizer que Outubro Novembro corresponde a um modelo de cinema “psicológico” capaz de contrariar os valores correntes que reduziram as personagens a derivações de formatos televisivos ou, no pólo oposto, a marionetas dos filmes ditos de “efeitos especiais”. Afinal de contas, vale a pena lembrar que a Áustria também tem cinema.