sexta-feira, abril 10, 2015

Nas palavras de Herberto Helder (3/3)

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Estremece-se às vezes desde o chão,
Por se ter uma navalha no bolso:
por o sexo ser sumptuoso:
por causa dos buracos luminosos na camisa,
Tem-se medo do poder
da nudez,
A finura da carne: uma unhada
no coração:
o modo de fazer rodar o quarto:
o barulho que se ouve nos canos onde
a água vive - tudo
sob a ameaça de uma riqueza
brusca
em nós, Quando um raio se desencadeia
pela coluna vertebral
abaixo, O golpe entre as madeixas
frias, Toca-se na cama:
e nunca mais se dorme, Toca-se
onde os pulmões se cosem à boca para gritar,
Às vezes tem-se o dom de fincar os pés na paisagem
em massa, Um feixe
desenfeixa-se no avesso - estala
fora, Com que vozes se encontra a gente
quando
o pavor se faz música
ordem
exercício nominal?,
Arrancamo-nos a tudo como
se arranca a unha
a um dedo: ou o dedo à mão: ou à mão
ao gesto
amassando a terra como se penteia,
Pente que reabre a chaga e a alastra,
Que a aprofunda
como o sangue aprofunda a claridade
pequena
de um lenço, se o lenço
se molha na costura que sangra
perpetuamente, A coroa irrompe da cabeça
pelo ímpeto
da realeza animal, O choque de um astro
calcinaria tudo
- o ceptro que nos crava no mundo
o manto
o escudo
os anéis como nós de dedos,
Morre-se de alta tensão,
É o relâmpago de um troço avistado,
As voragens à força de janelas,
ou é Deus que nos olha em cheio: dentro

H. H.
Ofício Cantante
Assírio & Alvim, 2009

* * * * *

"Desde o chão", quer dizer, lá onde o corpo existe como emanação da terra e da sua verdade mais silenciosa e eterna. Afinal de contas, escolher um lugar no mundo é também começar a escrever.
Agrimensor, arquitecto e cineasta — a escrita de Herberto Helder dá-nos a ver o poeta, não como aquele que se exilou do espaço comum dos homens comuns, antes como o que recusa escamotear a lógica silenciosa, social sem redes, dos vasos comunicantes de todas as solidões. De facto, a definição do poeta como aquele que está para além dos mortais é uma impostura: ele anda sempre por aí. E só alguns, cada vez mais escassos, estão disponíveis para aceitar o medo que as suas palavras transportam.