Margarida Cardoso filma um passado colonial assombrado pelas mais inquietantes abstracções. Ao mesmo tempo, é tudo muito concreto, muito nosso — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 Fevereiro), com o título 'Jogo de espelhos'.
Estranho filme que é Yvone Kane. Estranho e fascinante. Porquê? Porque a sua estranheza começa numa bizarra naturalidade: não é verdade que nele reconhecemos as marcas das nossas memórias coloniais? Ao mesmo tempo, será que sabemos dizer o que são, e como são, essas memórias? Acima de tudo, será que, para além da linguagem descarnada da diplomacia ou da retórica dos discursos militantes, ainda há espaço para a revelação de personagens singulares, libertas de qualquer facilidade determinista?
A aposta de Margarida Cardoso passa, justamente, pela criação de um leque de personagens, tão cristalinas quanto misteriosas, que não podemos reduzir a meros emblemas da infinita complexidade da história. Rita existe como a mais pura emanação dessa complexidade, a ponto de se inscrever no filme como aquela que pergunta (quem foi Yvone Kane?), ao mesmo tempo que não sabe garantir, nem mesmo a si própria, se as respostas que vai encontrar correspondem a alguma forma de apaziguamento individual ou colectivo. E não é das menores maravilhas deste filme tão depurado que Beatriz Batarda consiga colocar em cena a branda insatisfação de alguém cuja identidade, mesmo no silêncio mais casto, permanece uma ferida em aberto.
Como uma discreta assinatura visual (mas é, sobretudo, um conceito dialéctico do espaço e da usura do tempo), Margarida Cardoso define quase todas as cenas de Yvone Kane a partir da obsessiva presença de janelas que funcionam como espelhos, de espelhos que, momentaneamente, parecem janelas. Como se todos esses vidros fossem, não objectos que aceitam a luz, antes paredes disfarçadas de radiosa transparência. Compreendemos, enfim, o mais difícil: a história resiste sempre aos desejos dos humanos porque todos os cenários são interiores.