Assim vai o mercado português: o mais recente filme de Jason Reitman saíu directamente para os... videoclubes da televisão por cabo! E que belo filme! — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 Março).
Situação bizarra, afinal sintomática dos nossos tempos difíceis: uma das mais interessantes estreias cinematográficas dos últimos meses ocorreu apenas nos circuitos digitais, através dos videoclubes da televisão por cabo. E convenhamos que não se trata de um objecto proveniente de zonas mais ou menos marginais de produção: estamos a falar de Homens, Mulheres & Crianças, de Jason Reitman, autor de títulos tão conhecidos como Juno (2007) ou Nas Nuvens (2009), para mais contando com um elenco que integra uma grande vedeta, Adam Sandler, a par de nomes como Jennifer Garner, Rosemarie DeWitt e Ansel Elgort (protagonista do sucesso A Culpa É das Estrelas).
Há uma ironia incontornável neste modelo de difusão: estamos, de facto, perante um labirinto de histórias sobre as relações humanas contemporâneas, precisamente através do mundo digital. Podemos mesmo considerar que o trabalho de Reitman está para os sistemas de comunicação do nosso séc. XXI um pouco como Sexo, Mentiras e Vídeo (1989), de Steven Soderbergh, esteve para o fenómeno de proliferação do vídeo. Para além das diferenças dos respectivos contextos, o que aproxima os dois filmes é a consciência crítica da tecnologia, não como um instrumento neutro das relações humanas, antes como um aparato que contamina essas mesmas relações — com as câmaras de vídeo no primeiro caso e, agora, através dos circuitos ínvios da Internet.
Seria francamente redutor resumir Homens, Mulheres & Crianças como uma visão “condenatória” da Internet. Se há algum preconceito que o filme de Reitman combate é, justamente, o que leva a demonizar qualquer utilização corrente de qualquer recurso tecnológico: este é, afinal, um retrato de pessoas cuja envolvência através da Internet ocorreu a partir de uma candura, porventura uma cruel ignorância, do que significa (ou pode significar) estar online.
Na sua construção narrativa, o filme faz lembrar Desligados/Disconnect (2012), de Henry Alex Rubin, outro brilhante exemplo de abordagem de uma conjuntura social em que quase todas as formas de comunicação entre humanos foram “substituídas” por elos de natureza digital. Aliás, a expressão “natureza digital” arrasta uma trágica ambivalência, uma vez que aquilo que está em jogo é a parasitação, pela cultura digital, de todas as formas de comportamento que encarávamos como naturalmente humanas.
Homens, Mulheres & Crianças desenvolve-se a partir de uma lógica coral que, até certo ponto, faz lembrar algumas experiências de Paul Thomas Anderson, nomeadamente em Magnólia (1999): nenhuma personagem ocupa um lugar central, já que tudo acontece a partir do “colectivismo” favorecido pelos links, “likes" e outros mecanismos de movimentação no interior da Internet. Certamente não por acaso, esta é uma paisagem de relações sexuais mais ou menos virtuais e, num plano de perturbante abrangência simbólica, de decomposição dos tradicionais laços familiares.
Reitman revela-nos uma galeria de personagens, provenientes de várias gerações, que vivem através da Internet as angústias mais extremas, a começar pela ilusão de que um elo informático pode corresponder a uma espécie de gratificante normalização de qualquer forma de desejo. Ao mesmo tempo, e apesar das dilaceradas emoções que percorrem o seu filme, esta é uma exposição atravessada por uma terrível serenidade: as personagens vivem instaladas num sonambulismo casto (digital, sem dúvida) em que a multiplicação de mensagens, sms e outras derivações informáticas arrasta uma perda paradoxal de qualquer capacidade de interacção afectiva.
Reitman encena este mundo virtual através de um dispositivo visual que, não sendo cinematograficamente inédito, aqui adquire uma especial importância: as personagens são muitas vezes associadas às suas mensagens, surgindo nas imagens as janelas dos textos que, por telemóvel ou computador, trocam entre si — dir-se-ia uma banda desenhada em que, quanto mais proliferam as linhas de diálogo, mais se anula a capacidade de cada um escutar o outro.