quinta-feira, março 26, 2015

Nas palavras de Herberto Helder (1/3)


Há cidades cor de pérola onde as mulheres
existem velozmente. Onde
às vezes param, e são morosas
por dentro. Há cidades absolutas,
trabalhadas interiormente pelo pensamento
das mulheres.
Lugares límpidos e depois nocturnos,
vistos ao alto como um fogo antigo,
ou como um fogo juvenil.
Vistos fixamente abaixados nas águas
celestes.
Há lugares de um esplendor virgem,
com mulheres puras cujas mãos
estremecem. Mulheres que imaginam
num supremo silêncio, elevando-se
sobre as pancadas da minha arte interior.

Há cidades esquecidas pelas semanas fora.
Emoções onde vivo sem orelhas
nem dedos. Onde consumo
uma amizade bárbara. Um amor
levitante. Zona
que se refere aos meus dons desconhecidos.
Há fervorosas e leves cidades sob os arcos
pensadores. Para que algumas mulheres
sejam cândidas. Para que alguém
bata em mim no alto da noite e me diga
o terror de semanas desaparecidas.
Eu durmo no ar dessas cidades femininas
cujos espinhos e sangues me inspiram
o fundo da vida.
Nelas queimo o mês que me pertence.
o minha loucura, escada
sobre escada.

MuIheres que eu amo com um des-
espero .fulminante, a quem beijo os pés
supostos entre pensamento e movimento.
Cujo nome belo e sufocante digo com terror,
com alegria. Em que toco levemente
Imente a boca brutal.
Há mulheres que colocam cidades doces
e formidáveis no espaço, dentro
de ténues pérolas.
Que racham a luz de alto a baixo
e criam uma insondável ilusão.

Dentro de minha idade, desde
a treva, de crime em crime - espero
a felicidade de loucas delicadas
mulheres.
Uma cidade voltada para dentro
do génio, aberta como uma boca
em cima do som.
Com estrelas secas.
Parada.

Subo as mulheres aos degraus.
Seus pedregulhos perante Deus.
É a vida futura tocando o sangue
de um amargo delírio.
Olho de cima a beleza genial
de sua cabeça
ardente: - E as altas cidades desenvolvem-se
no meu pensamento quente.

H.H.
Lugar / Poesia Toda
Assírio & Alvim (1979)

* * * * *

As cidades. As mulheres. Um lugar para viver. A presença que se faz ausência, regressando ainda mais intensa, reconvertendo o lugar até à abstracção muito concreta do pensamento.
Há na poesia de Herberto Helder uma pulsão fantástica (nada a ver com fantasista) que, em boa verdade, faz regressar o poeta — convocando o leitor para a mesma aventura — a tudo aquilo que se diz, sente e edifica à flor da pele, num desespero feliz em que pressentimos a possibilidade de uma relação humana. Esta solidão partilhada não tenta saturar o mundo de significados, televisionando-o como coisa fechada — trata-se antes de reconhecer que o mundo não pára de significar, e a uma velocidade superior à de qualquer escrita. Provavelmente, a poesia é a arte de reconhecer, e escrever, essa lentidão.