Marguerite Duras e Jean-Luc Godard mantiveram um diálogo que, recentemente, se transformou em livro: são duas visões do mundo unidas por palavras e imagens — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 Março), com o título 'Diálogos sobre a criação do impossível'.
Foi em 1977 que Marguerite Duras realizou um dos seus filmes mais belos e também mais desconcertantes: Le Camion coloca frente a frente uma escritora e um actor; ela lê o argumento de um filme que vai realizar, ele escuta-a num misto de curiosidade e ansiedade. Num gesto cuja intensidade simbólica não será preciso sublinhar, Duras atribuiu a si mesma o papel da escritora; o actor, em pose de tocante vulnerabilidade, é Gerard Depardieu.
As palavras do argumento não são ilustradas por nenhuma “materialização” das personagens — em Duras, as palavras não apelam necessariamente à figuração. Em todo o caso, o camião que o título refere existe mesmo: vemo-lo em movimento, em várias imagens sem relação explícita com o lugar onde estão as duas personagens.
Em 1979, quando rodava Sauve Qui Peut (La Vie) — entre nós lançado com o título Salve-se Quem Puder —, Jean-Luc Godard concebeu uma cena com a presença de Duras, por assim dizer, assumindo o seu próprio papel. A escritora acedeu a registar um diálogo, mas não a ser filmada, o que levou Godard a encenar a sua ausência, homenageando-a como um caloroso fantasma literário. De tal modo que, a certa altura, vemos a personagem de Jacques Dutronc (que se chama Paul Godard), algures no meio do trânsito, conduzindo atrás de um camião, e dizendo: “Cada vez que virem passar um camião, pensem que é uma palavra de mulher que passa”.
Este peculiar jogo de escondidas entre dois admiráveis criadores do cinema contemporâneo acabou por ser vivido através de três encontros que ficaram registados para a posteridade, recentemente editados pelo Centro Pompidou num livro que se intitula apenas Duras/Godard – Dialogues (com organização e comentários de Cyril Béghin). São diálogos de 1979, 1980 e 1987 (Duras faleceu em 1996, contava 81 anos) cujo fascínio envolve sempre um confronto dialéctico entre a energia das imagens e o poder primitivo das palavras. Como diz Duras, recusando qualquer “repouso” da literatura: “Não creio que a imagem possa alguma vez substituir aquilo que chamei a proliferação indefinida da palavra”.
Entenda-se: não são diálogos “especializados”, à maneira dos tecnocratas que falam da euforia do “progresso” ou da dinâmica dos “mercados” como se já não houvesse seres humanos nas trocas sociais de todos os dias. Duras e Godard arriscam pensar e questionar as própria matérias com que trabalham — palavras e imagens —, avaliando o modo como, através delas, melhor ou pior, discutimos e, num certo sentido, desbravamos o nosso lugar no mundo.
Assumindo todas as responsabilidades da arte de registar esse mundo, Godard define mesmo o filme como “um prolongamento de mim próprio”, ou antes “eu que me prolongo através dele”. Ao que Duras pergunta se tal vivência desemboca em algo de “impossível”. Sem dúvida, uma vez que “não podemos criar nada a não ser o impossível”, sublinha Godard. “Exactamente”, diz ela.