A série Empire enfrenta, com agilidade e inteligência, os clichés de representação da cultura afro-americana — este texto foi publicado na revista "Notícias TV", do Diário de Notícias (6 Março), com o título 'Memórias do Rei Lear'.
Sou dos que pensam que a polémica, desencadeada nos EUA, sobre a ausência de actores negros nas nomeações dos Oscars deste ano só pode atrair (como atraiu) um pernicioso equívoco: o de confundir o valor artístico, seja do que for, com uma estatística fechada e determinista.
O caso envolveu declarações, a meu ver profundamente infelizes, de David Oyelowo (intérprete de Martin Luther King no filme Selma), considerando que o reconhecimento dos actores negros só acontece quando interpretam personagens subservientes. Para além da cegueira histórica que as suas palavras podem favorecer, importa perguntar desde quando a avaliação de um actor, seja qual for a cor da sua pele, passou a ser uma consagração automática das características das respectivas personagens — será que o Oscar atribuído a Denzel Washington pela figura maligna do polícia de Dia de Treino (2001) correspondeu a uma exaltação da corrupção no interior das forças da ordem?
Vêm estas considerações a propósito daquele que é, neste momento, na área da ficção, um fascinante acontecimento televisivo: a série Empire (Fox Life), centrada nas atribulações de uma família cujo patriarca (Terrence Howard) dirige uma poderosa editora discográfica especializada na área do hip hop. Aqui está um objecto que lida com componentes viscerais da cultura afro-americana, resistindo, ponto por ponto, aos clichés iconográficos, simbólicos e estéticos que, não poucas vezes, encerram essa cultura num espartilho de banais maniqueísmos.
Lee Daniels, realizador de Empire, tem sido, aliás, um narrador empenhado em discutir os mecanismos mais simplistas de figuração dos temas afro-americanos através de filmes como Precious (2009), The Paperboy (2012) e O Mordomo (2013). A sua agilidade criativa leva-o mesmo a conceber Empire a partir de uma série de variações sobre a herança dramatúrgica do Rei Lear. Escusado será dizer que seria um disparate penalizar o seu trabalho porque, tanto quanto se sabe, Shakespeare não tem uma banda de hip hop...