quarta-feira, março 04, 2015

A intolerância das redes sociais

21 GRAMAS (2003)
Infelizmente, há em muitos sectores das chamadas redes sociais uma consagração quotidiana da degradação das relações humanas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (29 Fevereiro), com o título 'A intolerância promovida pelas redes sociais'.

O desenvolvimento das chamadas redes sociais tem contribuído para uma cada vez mais escassa reflexão sobre o mundo das imagens. Claro que as qualidades de utilização de plataformas como o Facebook ou o Twitter dependem e dependerão sempre, em parte, dos respectivos utilizadores. Mas isso não nos deve impedir de observar que, muitas vezes, o conceito “social” em jogo se reduz a práticas de difamação em que o achincalhamento de qualquer indivíduo parece existir como único objectivo das “mensagens” que se põem a circular.
Viu-se com o tratamento a que muitos americanos acharam por bem sujeitar Sean Penn por ter entregue o Oscar de melhor filme (Birdman) ao mexicano Alejandro González Iñárritu chamando-lhe “filho da mãe” e questionando-se sobre o facto de lhe terem dado um cartão de residência (“green card”) nos EUA... Não interessou que ele o tivesse dito em tom de irónica cumplicidade (aliás sublinhada por uma reveladora careta). Também foi indiferente que Penn tenha com Inárritu uma relação pessoal que passou pela colaboração em 21 Gramas (2003), por certo uma das melhores interpretações da sua carreira. Escândalo supremo: eles são mesmo amigos e celebraram efusivamente o triunfo de Birdman! Nada disso pesou: Penn estaria a ser politicamente incorrecto perante os graves problemas da imigração.
Assistimos, assim, à promoção de uma apoteótica estupidez que só conhece uma lei: qualquer comportamento humano apenas existe como pretexto compulsivo de chacota ou, no pólo oposto, consagração pueril, com muitos polegares ao alto (o que decorre do mesmo primarismo cognitivo e moral).
Por uma coincidência que não deixa de envolver alguma ironia, esta semana a entidade regulador de telecomunicações nos EUA (Federal Communications Comission) divulgou a decisão de considerar a Internet um “bem público”, tal como a rede telefónica. A complexidade do que está em jogo — incluindo as questões práticas e legais que o assunto suscita — não se deixa resumir nestas linhas. Lembremos, em todo o caso, que o fundamento desta decisão sobre a “neutralidade da Internet” (“Net neutrality”) decorre do próprio princípio fundador da Internet. A saber: a igualdade de tratamento de todas as informações que nela circulam.
Idealismo impossível de pôr em prática? Talvez. Seja como for, importa analisar o poder imenso das redes sociais. E repare-se: não se trata apenas de questionar a visibilidade automática dos seus conteúdos em muitas plataformas, mas também de discutir o modo perverso (muitas vezes absolutamente irresponsável) com que alguns modelos de informação põem a circular tais conteúdos, tratando-os como verdades automáticas que não admitem qualquer tipo de pensamento para além dos seus medíocres parâmetros. No caso de Sean Penn, tratava-se de celebrar a cinefilia como uma rede de cumplicidades, mas o poder social de outras redes quis impor a sua militante intolerância.