O teledisco de Living for Love estreou-se no Snapchat: Madonna desenha, assim, mais um espectacular desvio na história da cultura pop — este texto foi publicado no Diário de Notícias (8 Fevereiro), com o título 'Madonna e a cor do sangue'.
Lançado em 2011 por três estudantes da Universidade de Stanford, o Snapchat é uma daquelas gloriosas banalidades com que alimentamos a ilusão de que estamos sempre a “comunicar”. Inteligente, sem dúvida: vocacionada para o envio de mensagens por telemóvel, a aplicação permite partilhar imagens ou pequenos filmes (snaps), programando, para o receptor, o respectivo tempo de visibilidade entre um e dez segundos... Milhões de utilizadores fazem o seu sucesso, estando a Snapchat, Inc. avaliada em 10 mil milhões de dólares!
Snapchat [logo] |
A história acontece muito para além do Snapchat (até porque, como é óbvio, em menos de 24 horas, o teledisco ficou disponível nos mais variados contextos, a começar pelo YouTube). Acontece que Madonna já não lançava um teledisco desde Julho de 2012 (quando surgiu Turn Up the Radio, realizado por Tom Munro, do álbum MDNA). E para quem desempenhou um papel fulcral na consolidação da MTV — com telediscos tão emblemáticos como Material Girl (1985), Papa Don’t Preach (1986) ou Express Yourself (1989) —, a afirmação neste campo afigurava-se de novo decisiva, até para combater os efeitos dramáticos da divulgação ilegal de muitos temas do novo disco.
Utilizando outra plataforma da Internet (Instagram), Madonna divulgara nas últimas semanas algumas imagens de antecipação. Por um lado, deu a ver diversas versões (em vasos e esculturas) da figura mitológica do Minotauro, cabeça de touro e corpo de homem; por outro lado, publicou um fragmento de um quadro de Francis Bacon (Study for Bullfight Nº 1, 1969), centrado na figura de um homem envolvido com um touro [video].
Realizado pela dupla francesa Julien Choquard/Camille Hirigoyen (que assina com o nome artístico J.A.C.K.), Living for Love organiza-se como um confronto entre a personagem de Madonna, inicialmente alternando dois fatos de toureiro, e um grupo de bailarinos cujas cabeças evocam, precisamente, o Minotauro. Para além da sugestão tauromáquica, prevalece uma ambiência eminentemente teatral (que não é estranha às memórias do teledisco de Like a Prayer [video], realizado em 1989 por Mary Lambert), toda ela banhada por elementos cenográficos cor de sangue.
Trata-se, de facto, de algo visceral: a relação da figura feminina com os elementos masculinos está encenada como um combate de desafio e sedução, em última instância celebrando a capacidade do espectáculo mobilizar as nossas crenças no Bem ou no Mal. Quem vence? Só mesmo ignorando a energia simbólica do trabalho de Madonna, podemos ter dúvidas sobre a resposta.