Ser ou não ser Syriza, eis a questão... Ou talvez não: de que falamos quando falamos da política dos outros? — esta crónica de televisão foi publicada na revista "Notícias TV", do Diário de Notícias (6 Fevereiro).
Como era inevitável, assistimos à rápida desagregação da miragem ecuménica gerada pela proliferação televisiva da expressão “Je suis Charlie”. Isto porque vivemos num tempo em que a noção de militância deixou de ser apanágio dos partidos políticos, para funcionar como a mais forte lei mediática. Tudo o que possa suscitar alguma reacção de protesto — e escusado será sublinhar que a hedionda agressão contra o Charlie Hebdo satisfazia tal requisito humano — é imediatamente transfigurado em rudimentar simbologia colectiva. Neste caso, com o poder ainda mais ilusório de sustentar uma homilia colectiva (“ser Charlie”) através da máxima singularidade (“eu sou Charlie”).
As fissuras abertas na interpretação redentora do “Je suis Charlie” não impediram que, embora com diferenças, o fenómeno de colectivização pueril da opinião regressasse com a vitória do partido Syriza nas eleições da Grécia. Num contexto em que o debate político se arrasta, exangue, pelas paisagens da gritaria televisiva, acordámos de um dia para o outro num país com uma impressionante densidade de especialistas “gregos”: pró ou contra Syriza, todos habitam em Portugal e estão todos na televisão, nem que seja através de anódinas reportagens de rua.
Foi artifício ainda mais fugaz, como também seria inevitável. Mas a simples existência do fenómeno diz bem da carência de pensamento (político e televisivo) em que vogamos. Dir-se-ia que o mundo não existe como palco em que todos os homens e mulheres “são apenas actores”, mas sim como máquina de produção de sentidos irrisórios em que cada um já só se identifica através de uma efémera fusão com algum desses sentidos.
Ser Charlie, ser Syriza ou ser fã de Cristiano Ronaldo... O lote de hipóteses é imenso, consagrando modos de existir totalmente parasitados pelos axiomas mediáticos e pelos seus muitos links televisivos. Desapareceu qualquer lógica de pertença, sendo impossível pensar a difícil arte de ser cidadão — engolimos uma palavra de ordem, digerimo-la, esgotamo-la e esperamos pela próxima.