sexta-feira, fevereiro 13, 2015

Berlim já viu o novo Malick
(e eu gostei)


O ritmo a que vamos encontrando hoje novos filmes de Terrence Malick em nada se pode comparar ao que outrora conhecíamos num realizador que merecia, mais que qualquer um, o epíteto de bissexto quando chegava a altura de reparar na sua agenda de estreias. Cinco anos separaram a sua estreia em Badlands (1973) de Days of Heaven (1978), o filme que revela primeiros sinais de uma linguagem que viria a aperfeiçoar com o tempo. Vinte anos esperámos depois para o rever, em 1998, em A Barreira Invisível, sete depois até O Novo Mundo (2005) e seis até A Árvore da Vida (2011). De então para cá os intervalos foram reduzidos a dois anos para To The Wonder (de 2013, que entre nós estreou com a tradução menos inspirada A Essência do Amor) e, agora, Knight of Cups, havendo já em carteira dois novos projetos. Um rodado ao mesmo tempo que Knight of Cups, deverá focar a cena musical em Austin, no Texas. Ao mesmo tempo está em pós-produção Voyage of Time, documentário no qual trabalha há vários anos e sobre o qual se disse já que seria destinado a ecrãs Imax e teria duas versões, uma para exibição em museus, outra, mais longa, destinada às salas de cinema… Explicações para tão prolífica agenda? Haverá razões, certamente. E habitualmente esquivo nestas coisas dos media, Malick não deverá ter vontade para as justificar. Mas se virmos em A Árvore da Vida o alcançar definitivo de uma linguagem muito pessoal que vinha a ensaiar desde 1978, podemos entender o pós-2011 como um tempo em que, com voz dominada, agora pode procurar outras demandas: histórias.

Knight of Cups (o título vem de uma carta de tarot) é uma narrativa clara e bem focada sobre um tempo de desnorte e vazio na vida de um argumentista de Hollywood (interpretado por Christian Bale) que, apesar de criar tantas personagens, não sabe afinal nem quem é nem para onde vai. O filme acompanha a sua demanda por um sentido para a sua vida, ao mesmo tempo que evoca ligações passadas e presentes, frágeis e curtas, entre as mulheres que passam pela sua vida cruzando-se personagens criadas por Cate Blanchett ou Natalie Portman. Entre cenas de hedonismo em mansões luxuriantes ao bom estilo o Grande Gatsby (versão Hollywood) ou clubes de strip e tempos de fuga entre areais de praia ou a paisagem sem vivalma do Vale da Morte, a vida do protagonista esbarra no que vê e sente de imediato, um sentido mais profundo não surgindo sequer na linha do horizonte.

Num filme urbano, essencialmente rodado em Los Angeles (e com uma sequência em Las Vegas que acentua mais ainda o fosso que separa a exuberância das formas do vazio que as move), as marcas formais do cinema de Malick são rapidamente reconhecíveis nos movimentos de câmara, nas opções e ritmos de montagem, na música – onde se destacam desta vez Vaughan Williams, Grieg, Debussy, Pärt e Hanan Townshend (que tal como no filme anterior assina o score original), surgindo ainda pontualmente ecos da cultura pop/rock contemporânea – e na presença da voz em off (que em alguns momentos cabe a Ben Kingsley, que conta a história de um príncipe enviado pelo pai para encontrar uma pérola e que, depois de se distrair, esquece quem é e cai num longo sono, num paralelo evidente para com o protagonista).

Há também elementos temáticos em comum, da busca interior ao procurar na fé ou espiritualidades (e aqui não se fecha no cristianismo, apesar de ser num padre que escuta a ideia do sofrimento como etapa a cumprir antes de atingir a iluminação). Há uma família que perdeu um de três irmãos (como n’A Árvore da Vida). Há ocasionais olhares sobre vidas marginais, entre ruas menos bafejadas pela sorte (como em To The Wonder). Mas há um respirar de uma busca nova, entre as imagens da cidade, os muitos planos subaquáticos (entre o mar e piscinas) e uma breve sequência – que podemos associar ao trabalho de fotografia que a personagem de Christian Bale às vezes acompanha – de imagens paradas a preto e branco que colocam novos elementos em jogo.

Ao invés da narrativa fragmentada em A Árvore da Vida este é um filme sem grandes elipses. O passado surge mais em encontros e evocações em vez de flashbacks, estes sendo breves e muitas vezes usando as texturas de imagem das velhas câmaras de vídeo. Tal como em To The Wonder, mas sem o desencantamento que então assombrava as figuras de Affleck e Bardem, a firme busca de sentido e de identidade do protagonista acompanha-nos num contraste entre a tranquilidade aparente da sua expressão (algo inerte e desencantada) e o torpor de dúvidas e ansiedades que imaginamos por detrás dos seus olhos. Acompanhá-lo, ao longo de duas horas, foi até aqui a melhor das experiências desta 65ª Berlinale.

PS. Este texto foi originalmente publicado na Máquina de Escrever